terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Texto retirado da publicação de Manuel Antunes, Lucinda Duarte e João Pedro Reino
"BARRAGENS EM PORTUGAL:
DE VILARINHO DA FURNA À ALDEIA DA LUZ, COM PASSAGEM PELO DOURO INTERNACIONAL"

O grande impulso para o sector eléctrico em Portugal surgiu nos anos de 1940, com a definição das linhas mestras da electrificação do país.

Foi neste âmbito que, a partir da década de 1950, se realizou a construção de grandes empreendimentos hidro e termo eléctricos, nomeadamente em Vilarinho da Furna, Picote, Miranda do Douro, Bemposta e, finalmente, em Alqueva, com a submersão da aldeia da Luz.
O grande impulso para o sector eléctrico em Portugal surgiu a partir de 1940, nomeadamente com a Lei 2002, de 1944, que definiu as linhas mestras da electrificação do País.

O que levou à criação das primeiras grandes empresas hidroeléctricas portuguesas: a Hidroeléctrica do Zêzere, para fornecer energia a Lisboa; a Hidroeléctrica do Cavado, para abastecer a cidade do Porto; a Hidroeléctrica do Douro; a que se juntou a Companhia Nacional de Electricidade, com a concessão das linhas e subestações de transporte, e a Termoeléctrica Portuguesa.

As referidas empresas viriam a fundir-se, em 1969, na Companhia Portuguesa de Electricidade (CPE), a qual acabou por ser nacionalizada, dando lugar à Electricidade de Portugal (EDP), em 30 de Junho de 1976, ficando esta com o monopólio da produção, transporte e distribuição de energia no Continente.

A construção das barragens do Douro Internacional constituiu uma marca de uma época, são uma experiência precisa, rigorosa e, para além do mais, grandiosa, que ficou oculta nas escarpas do Douro Internacional.
São elementos de afirmação do poder proteccionista do Estado. Era um período de euforia para os engenheiros e um ambicioso projecto de exploração hidroeléctrica num percurso de cerca de 40 kms do Douro.

A construção de barragens era sinónimo de orgulho e progresso tecnológico.

Era uma fase de assombro, na qual este tipo de empreendimentos eram um requisito obrigatório para o processo de industrialização/desenvolvimento local/nacional.

O caso do Douro Internacional é uma situação sui generis.
A construção das barragens de Picote, Miranda do Douro e Bemposta não implicou a submersão de nenhuma aldeia, logo não envolveu a sua relocalização e também não teve impactos directos sobre as comunidades. Com a edificação das barragens, os impactos foram essencialmente ao nível do património natural. No caso do Douro ainda existe um outro simbolismo de extrema importância. A edificação destas três barragens significava a conciliação do Movimento Moderno da Arquitectura com os aproveitamentos hidráulicos. Isto supunha que o processo de industrialização estabelecesse um diálogo entre os elementos arquitectónicos e a paisagem.

Estas barreiras de betão foram construídas na «época de ouro» das barragens. Estávamos em 1950. Primeiro Picote, depois Miranda do Douro e, por fim, Bemposta, já nos anos 60.

A construção de barragens significa a alteração da paisagem, ou seja, os paredões moldam e contribuem para um processo de modificação do horizonte. No entanto, esta conciliação entre Arquitectura e Engenharia, fez com que houvesse um esforço de fazer as barragens «como parte integrante» da paisagem. Isto implica que, nestes três casos, as barragens eram elementos de representação do Poder mas, também, elementos de produção da paisagem, ou seja, as barragens como uma componente que vai reconstruir a paisagem.

As barragens de Miranda do Douro, Bemposta e Picote simbolizam uma etapa da história da Arquitectura Moderna que se mantém desconhecida, tendo havido, por parte da equipa de arquitectos, uma preocupação de plena integração e inserção na paisagem, no contexto, isto é, uma perfeita relação entre a função e a forma. A construção destas barragens permitiu que nascesse um conjunto de equipamentos de invulgar valor, produto de uma admirável modernidade e de um excepcional cuidado, tanto no traço como na articulação com a paisagem natural, tendo-se conciliado as preocupações estéticas e a necessária funcionalidade.

Picote, Miranda do Douro e Bemposta são um exemplo paradigmático, por todo o contexto envolvente. Como apoio a essa construção, foi edificado um conjunto de equipamentos colectivos, O Moderno Escondido (Cannatà, 1997). Estas edificações foram feitas como uma estrutura de serviços auto-suficientes, uma cidade ideal, a cidade dos tempos modernos:

foi criado um centro urbano de raiz. O objectivo era oferecer aos trabalhadores as condições de habitabilidade nos espaços residenciais, situados junto da obra. Construíram-se moradias, escola, centro comercial e uma capela. Todas estas edificações foram obra dos arquitectos João Archer, Nunes de Almeida e Rogério Ramos, responsáveis pela construção da cidade ideal, da cidade moderna, da «cidade à colher». Um trabalho notável, mas esquecido e ignorado. A cidade moderna tinha três elementos chave: o local de trabalho, de residência e o espaço comercial (onde se incluía a escola, posto médico, o centro social e as lojas). Consistia numa arquitectura geométrica, modulada, afirmativa, de forte presença visual.

Mas, sempre articulada com as linhas de paisagem, numa sabedoria de implantação atenta às formas naturais que parece directamente herdada da tradição helenística. As edificações eram um marco racionalista, onde tudo foi pensado até ao mais pequeno pormenor do mobiliário.

Todas as barragens têm elementos comuns: uma central, um edifício de comando, de descarga e um parque de linhas.

A princípio todas seguiriam o mesmo modelo de construção (no que se refere às edificações de apoio à construção da barragem). Mas, à medida que os projectos avançam, os propósitos vão ficando incompletos em termos de infra-estruturas e zonas de apoio, não passando do papel.

A barragem de Picote foi a primeira das três intervenções a ser realizada no Douro Internacional, tendo-se iniciado em 1954 e a sua inauguração ocorreu em 1959. A localização desta barragem, uma pequeníssima aldeia rural, coincidia (coincide) com uma das áreas menos desenvolvida do País.

Foram montadas infra-estruturas para instalar as famílias dos trabalhadores envolvidos na construção. Em consequência da escassez de casas na zona do estaleiro, foi edificado um bairro privativo (casas definitivas). Foram construídas habitações para 5.000 mil pessoas, desenharam-se estradas, edificaram-se casas provisórias em madeira com baseamento em granito (que seriam mais tarde desmontáveis para a utilização noutros estaleiros) e elaborou-se um plano urbanístico para as estruturas definitivas. Picote era o núcleo central dos três empreendimentos.

Das estruturas definitivas faziam parte a estação de tratamento de água (em consequência da carência de água para abastecer este núcleo populacional foi necessário recorrer à elevação da água do rio e ao seu adequado tratamento), a escola, o bairro dos operários especializados e do pessoal dirigente (casa dos engenheiros), a capela, a estalagem, uma zona recreativa, parque de jogos, piscina e centro comercial (estação de correios, posto de saúde, padaria, mercearia, talho, peixaria, drogaria e barbearia).

As edificações definitivas serviriam, depois, para a gestão e manutenção do empreendimento. Em toda a construção e planeamento do espaço houve um cuidado meticuloso.

Os alojamentos são de dois tipos: havia as habitações uni familiares para os trabalhadores com família e as habitações colectivas para aqueles que não tinham familiares.

Estima-se que, no pico dos trabalhos, estiveram envolvidos 3.600 trabalhadores e, provavelmente, juntando os seus familiares, a população deste núcleo pudesse ter atingido os 6.500 indivíduos.

A barragem de Miranda do Douro é contemporânea à construção de Picote. Os trabalhos começaram em 1957 e terminaram em 1960. Neste caso foi elaborado um plano que estava em plena articulação e moldado à cidade de Miranda.

Assim, Miranda recebe, numa espécie de ressarcimento, um conjunto de infra-estruturas até então inexistentes, para usufruto de toda a população local. Estas contrapartidas foram exigidas pelos autarcas locais e teriam como objectivo aumentar a qualidade de vida da população. Paralelamente, são construídas as edificações que iriam auxiliar a construção da barragem. O tipo de edificações e o planeamento urbanístico seguiu o modelo de Picote.

Bemposta foi o último dos aproveitamentos do Douro Internacional. Os trabalhos iniciaram-se nos começos de 1960 e terminaram em 1964. Planeou-se a construção de um grande complexo residencial, um novo centro urbano. Deste novo núcleo faziam parte uma igreja, um centro recreativo, um edifício alfandegário e um posto de abastecimento de uma companhia petrolífera. Contudo, em consequência do somatório de vários factores (entre os quais se destaca a inovação tecnológica e o abrandamento dos investimentos do governo), este projecto nunca se chega a concretizar integralmente.

Estas construções, que possuem um valor arquitectónico inquestionável (funcionavam como uma plataforma logística para a construção das barragens), foram erguidas como uma espécie de «condomínio fechado», um gueto, isto é, como um território segregado. A cidade ideal (a cidade de sonho) constituía um modelo de organização anti-urbano, um modelo fechado em si mesmo. O objectivo era não haver contacto entre os da terra e as pessoas que vinham de fora para trabalhar nas obras. Numa primeira fase, esse objectivo foi conseguido. Com o decorrer dos tempos, começou a haver uma inter penetração entre os da terra e os trabalhadores das barragens. Estimava-se que, durante a construção, cinco mil pessoas permaneceriam nesta zona. Foi o «período áureo» para os conterrâneos. Picote, Miranda do Douro e Bemposta foram locais de confluência de milhares de pessoas. Os pequenos núcleos rurais passaram a ser lugares de grande movimentação.

Actualmente, com o avanço tecnológico e com a gestão centralizada das barragens, o número de funcionários necessários para assegurar este empreendimento é muito reduzido. A crise começou com a informatização das barragens, tendo-se iniciado um progressivo despovoamento de todas as instalações. Parte deste património edificado está votado ao abandono (casa dos engenheiros, escola, centro comercial), tendo-se convertido num povoado fantasma, totalmente despojado, situado num contexto rural de excepcional beleza.

Nos bairros dos operários, as casas ou foram recentemente vendidas a forasteiros (que as irão usar como segunda habitação), ou estão ocupadas por reformados da empresa.

Toda esta zona sofreu, nos últimos trinta anos, com o processo de i/emigração. O despovoamento é um problema preocupante do interior do país. O crescimento apregoado nos anos 50/60, do século passado, foi uma ilusão. Ainda hoje, as populações raianas vivem com dificuldades e o desenvolvimento socio-económico foi uma miragem.

Manuel de Azevedo Antunes, Lucinda Coutinho Duarte, João Pedro Reino
CEPAD – Centro de Estudos da População Ambiente e Desenvolvimento -Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - Lisboa

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