CEO da EDP em foco
O admirável mundo de Mexia
Li, com algum atraso e por sugestão amiga, a entrevista de António Mexia, presidente da EDP, à penúltima edição da Única, a revista do Expresso. É um documento de notável interesse psicológico e sociológico sobre o perfil do entrevistado – e os estereótipos culturais dos chamados gestores de topo –, mas também sobre um género de jornalismo hoje muito comum em Portugal (quando não estão em causa actores e controvérsias políticas).
Será mera impressão minha ou é um facto indisfarçável que os homens de negócios mais influentes gozam de um tratamento de privilégio excepcional nos jornais económicos e na imprensa generalista? Neste caso particular, tudo parece tão meticulosamente programado e encenado – até o cenário escolhido para as poses da entrevista, a barragem do Alqueva – que a espontaneidade ou o distanciamento entre entrevistador e entrevistado deixam de existir.
Com duas ou três excepções para confirmar a regra, as declarações do gestor mais bem pago do país sublinham um narcisismo extravagante e uma visão quase malthusiana do sucesso social. Segundo Mexia, apenas líderes como ele teriam direito a posar para o retrato da História: «Eu gosto de liderança. Gosto dos números 1, 2 e 3. Não gosto dos outros a partir do 4,5…Dou-me mal com eles, embora o 7 seja o meu número da sorte». (…) «Tenho um apetite imenso pela escala. Estive ligado àquilo que foi o maior investimento estrangeiro em Portugal – anunciei o investimento da Autoeuropa –, estive ligado ao projecto mais interessante da década de 90, que foi o da introdução do gás natural, e neste momento estou na maior multinacional portuguesa. Eu gosto de escala. Dou-me mal com coisas pequenas».
Nesta obsessão pelas coisas grandes, pela escala, pelo bigger than life, Mexia ‘liga-se’ a todos os protagonismos (ainda quando o seu papel possa ter sido apenas instrumental ou episódico). A ideia que faz de si mesmo ultrapassa qualquer circunstância ou contingência: vê-se a ocupar o palco como superstar de uma companhia que não existiria sem ele. Ele é, como diz, o grande «energizador». «Energizar» é o seu verbo mágico.
Sintomaticamente, o mesmo homem que faz depender a competência técnica da «inteligência emocional» denuncia um extraordinário défice de auto-análise. Por um lado, pretende que «ser líder não tem a ver com ego. Ser líder é ser humilde, ver e ouvir e associar-lhe determinação e decidir». Mas essa suposta humildade não o impede – a propósito de uma conversa com Passos Coelho – de «ter a mania de dar conselhos. Em tudo na vida digo do que não gosto e trago a solução».
De facto, ele julga ter sempre a solução para tudo, a solução que o levou a acertar em todos os desafios da vida, mesmo quando foi carteiro e barman na Suíça para pagar os estudos ou foi modelo publicitário em Portugal porque os seus ordenados como professor assistente em duas faculdades não lhe chegavam para pagar a renda da casa: «Era uma forma fantástica de ganhar dinheiro».
Na introdução da entrevista, a jornalista nota que ele «sobe as escadas a correr, dois degraus de cada vez» nas «dezenas de lanços que teve de transpor no interior da barragem do Alqueva». Páginas adiante, é ele próprio quem assume a teatralidade da representação: «Viu-me hoje a subir escadas não é! Quando é para subir, é para subir depressa. Deixei de festejar os meus anos, não gosto destas coisas das datas. Não gosto de ter menos tempo do que já tive. (…) Eu quero-me eternizar. Não necessariamente no poder. Quero trabalhar enquanto sentir que tenho valor acrescentado».
Para este workaholic do «valor acrescentado», o poder empresarial e o poder político constituem duas faces de uma mesma ambição – defende enfaticamente a presença do Estado na EDP embora recuse opinar sobre as golden share… –, apesar da «capacidade de sofrimento» que, segundo ele, a política pressupõe. Ministro de Santana, admite vir a ser um dia presidente de uma «das maiores empresas portuguesas», a Câmara de Lisboa, embora se deduza que aspira a voos ainda mais altos, para que se sentirá predestinado como ‘energizador da solução’.
Talvez esta capacidade providencial explique a perfeita boa consciência com que justifica o bónus de 3,1 milhões de euros que recebeu em 2009 e a displicência com que responde aos que se escandalizaram com isso: é apenas um sinónimo de «preguiça e inveja». Está tudo dito.
A grande polémica internacional sobre a questão dos bónus é omitida pela entrevistadora, que se limita a uma referência a Steve Jobs, esquecendo as normas restritivas que a maioria dos governos ocidentais, de esquerda ou direita, têm procurado adoptar e o Governo português tentou, em vão, pôr em prática. Quanto ao entrevistado, deduz-se que prescinde de comentá-la por estar fora do guião.
Mexia paira acima das convulsões planetárias da crise e das medidas de austeridade que os números de que ele não gosta (do 4 para diante, à excepção do 7…) serão forçados a pagar, por mais que isso custe às respectivas bolsas. Aliás, a palavra crise não consta das perguntas e respostas da entrevista ao Expresso, como se fosse uma ficção inteiramente estranha ao admirável mundo de António Mexia.
As ausências humanas são, de resto, aquilo que mais se faz sentir neste documento singular sobre o protótipo de um homem unidimensional. Somos informados de que Mexia pratica jardinagem ou alguma ginástica e que é um fotógrafo de iPhone com a paixão da fotografia. Mas aquilo de que mais gosta «mesmo é ouvir música, música, música» (embora se fique sem saber de que música se trata, suspeitando-se tão só que tem de ser ‘energizante’).
Desconhece-se se vai ao cinema, que livros lê ou que autores o marcaram, se frequenta museus ou se gosta de pintura. A entrevistadora escreve que o único assunto que o emociona é falar da sua filha de 12 anos: «Ela não é material…Percebe que é a coisa mais importante para mim». E aí, anota a jornalista, os seus «olhos enchem-se de lágrimas».
Vicente Jorge Silva, in Sol, Edição n.º 205 (p. 25) - 6 de Agosto de 2010
Será mera impressão minha ou é um facto indisfarçável que os homens de negócios mais influentes gozam de um tratamento de privilégio excepcional nos jornais económicos e na imprensa generalista? Neste caso particular, tudo parece tão meticulosamente programado e encenado – até o cenário escolhido para as poses da entrevista, a barragem do Alqueva – que a espontaneidade ou o distanciamento entre entrevistador e entrevistado deixam de existir.
Com duas ou três excepções para confirmar a regra, as declarações do gestor mais bem pago do país sublinham um narcisismo extravagante e uma visão quase malthusiana do sucesso social. Segundo Mexia, apenas líderes como ele teriam direito a posar para o retrato da História: «Eu gosto de liderança. Gosto dos números 1, 2 e 3. Não gosto dos outros a partir do 4,5…Dou-me mal com eles, embora o 7 seja o meu número da sorte». (…) «Tenho um apetite imenso pela escala. Estive ligado àquilo que foi o maior investimento estrangeiro em Portugal – anunciei o investimento da Autoeuropa –, estive ligado ao projecto mais interessante da década de 90, que foi o da introdução do gás natural, e neste momento estou na maior multinacional portuguesa. Eu gosto de escala. Dou-me mal com coisas pequenas».
Nesta obsessão pelas coisas grandes, pela escala, pelo bigger than life, Mexia ‘liga-se’ a todos os protagonismos (ainda quando o seu papel possa ter sido apenas instrumental ou episódico). A ideia que faz de si mesmo ultrapassa qualquer circunstância ou contingência: vê-se a ocupar o palco como superstar de uma companhia que não existiria sem ele. Ele é, como diz, o grande «energizador». «Energizar» é o seu verbo mágico.
Sintomaticamente, o mesmo homem que faz depender a competência técnica da «inteligência emocional» denuncia um extraordinário défice de auto-análise. Por um lado, pretende que «ser líder não tem a ver com ego. Ser líder é ser humilde, ver e ouvir e associar-lhe determinação e decidir». Mas essa suposta humildade não o impede – a propósito de uma conversa com Passos Coelho – de «ter a mania de dar conselhos. Em tudo na vida digo do que não gosto e trago a solução».
De facto, ele julga ter sempre a solução para tudo, a solução que o levou a acertar em todos os desafios da vida, mesmo quando foi carteiro e barman na Suíça para pagar os estudos ou foi modelo publicitário em Portugal porque os seus ordenados como professor assistente em duas faculdades não lhe chegavam para pagar a renda da casa: «Era uma forma fantástica de ganhar dinheiro».
Na introdução da entrevista, a jornalista nota que ele «sobe as escadas a correr, dois degraus de cada vez» nas «dezenas de lanços que teve de transpor no interior da barragem do Alqueva». Páginas adiante, é ele próprio quem assume a teatralidade da representação: «Viu-me hoje a subir escadas não é! Quando é para subir, é para subir depressa. Deixei de festejar os meus anos, não gosto destas coisas das datas. Não gosto de ter menos tempo do que já tive. (…) Eu quero-me eternizar. Não necessariamente no poder. Quero trabalhar enquanto sentir que tenho valor acrescentado».
Para este workaholic do «valor acrescentado», o poder empresarial e o poder político constituem duas faces de uma mesma ambição – defende enfaticamente a presença do Estado na EDP embora recuse opinar sobre as golden share… –, apesar da «capacidade de sofrimento» que, segundo ele, a política pressupõe. Ministro de Santana, admite vir a ser um dia presidente de uma «das maiores empresas portuguesas», a Câmara de Lisboa, embora se deduza que aspira a voos ainda mais altos, para que se sentirá predestinado como ‘energizador da solução’.
Talvez esta capacidade providencial explique a perfeita boa consciência com que justifica o bónus de 3,1 milhões de euros que recebeu em 2009 e a displicência com que responde aos que se escandalizaram com isso: é apenas um sinónimo de «preguiça e inveja». Está tudo dito.
A grande polémica internacional sobre a questão dos bónus é omitida pela entrevistadora, que se limita a uma referência a Steve Jobs, esquecendo as normas restritivas que a maioria dos governos ocidentais, de esquerda ou direita, têm procurado adoptar e o Governo português tentou, em vão, pôr em prática. Quanto ao entrevistado, deduz-se que prescinde de comentá-la por estar fora do guião.
Mexia paira acima das convulsões planetárias da crise e das medidas de austeridade que os números de que ele não gosta (do 4 para diante, à excepção do 7…) serão forçados a pagar, por mais que isso custe às respectivas bolsas. Aliás, a palavra crise não consta das perguntas e respostas da entrevista ao Expresso, como se fosse uma ficção inteiramente estranha ao admirável mundo de António Mexia.
As ausências humanas são, de resto, aquilo que mais se faz sentir neste documento singular sobre o protótipo de um homem unidimensional. Somos informados de que Mexia pratica jardinagem ou alguma ginástica e que é um fotógrafo de iPhone com a paixão da fotografia. Mas aquilo de que mais gosta «mesmo é ouvir música, música, música» (embora se fique sem saber de que música se trata, suspeitando-se tão só que tem de ser ‘energizante’).
Desconhece-se se vai ao cinema, que livros lê ou que autores o marcaram, se frequenta museus ou se gosta de pintura. A entrevistadora escreve que o único assunto que o emociona é falar da sua filha de 12 anos: «Ela não é material…Percebe que é a coisa mais importante para mim». E aí, anota a jornalista, os seus «olhos enchem-se de lágrimas».
Vicente Jorge Silva, in Sol, Edição n.º 205 (p. 25) - 6 de Agosto de 2010
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