quarta-feira, 4 de março de 2009

Barragem do Alqueva - Entre o mito e a dura realidade





Barragem do Alqueva - Entre o mito e a dura realidade

aecoist@alfa.ist.utl.pt, http://alfa.ist.utl.pt/~aecoist

O projecto da Barragem do Alqueva tem já quase meio século. Tendo surgido no 2.º Plano de Fomento do Estado Novo nos anos 50, integrado no Plano de Rega do Alentejo, tinha como objectivo, como o nome indica, o abastecimento de água a uma parte significativa do Baixo Alentejo, de modo a satisfazer as necessidades das populações e proporcionar água de rega. Pretendia-se assim promover o desenvolvimento daquela região, que sofria (e sofre) um atraso crónico.

Após décadas de adiamentos sucessivos, as comportas finalmente encerraram-se. Prevê-se que a Barragem do Alqueva crie um regolfo que submergirá cerca de 25 mil hectares, constituindo a maior albufeira da Europa. Serão instalados cerca de 110 mil hectares de perímetros de rega, uma rede de rega com cerca de cinco mil quilómetros de canais e mais de uma centena de estações de bombagem. De toda a água retida, cerca de 500 milhões de metros cúbicos por ano serão transvasados para a bacia hidrográfica do rio Sado.
Juntamente com outros valores astronómicos, estes dados sobre o Projecto Alqueva parecem indicar que se dará uma grande transformação no Alentejo, que as vastas regiões áridas compostas por xistos e calcários se transformarão numa zona altamente produtiva, que a tendência para a desertificação do interior meridional de Portugal será finalmente erradicada. Uma autêntica miragem. Ou não?

Quais são concretamente, a nível de ecossistemas, os impactos de uma barragem?

Qualquer barragem tem como consequência a destruição da vegetação ribeirinha, formação denominada galeria ripícola. Esta encontra-se adaptada para a sobrevivência em solos encharcados e para suportar períodos sazonais de cheias. Exemplos desta vegetação são o choupo, o amieiro, o salgueiro, o ulmeiro. Os sistemas radiculares da vegetação aí existentes constituem uma autêntica rede, que retém pequenos detritos de matéria orgânica em suspensão, consistindo uma reserva alimentar para insectos e peixes de água doce; sendo também um abrigo para muitas espécies; esta rede serve igualmente de base para a instalação de bactérias e algas microscópicas, que contribuem grandemente para a depuração biológica natural das águas. A sua existência condiciona assim a qualidade da água. Também a sombra oferecida por esta vegetação tem um efeito importantíssimo, sendo um factor de regulação térmica das águas.
As árvores da mata ribeirinha são normalmente de grande porte, oferecendo condições adequadas para a nidificação de vários animais. Elas são assim o suporte para inúmeras espécies, desempenhando um importante papel para todo o ecossistema. Após a construção de uma barragem, toda a zona ribeirnha a montante e a jusante sofre mudanças bruscas e irreversíveis.
As albufeiras das barragens não suportam qualquer vegetação ribeirinha. Independentemente da sua área, a variação brusca da altura do nível das águas, que não segue nenhum ciclo natural ou sazonal, não possibilita uma adaptação das espécies vegetais, acabando estas por desaparecer. Este cenário é observável em qualquer barragem.
Sendo a maior parte dos peixes de água doce migradores, e vivendo alguns inclusivamente no mar, todos têm a particularidade de, na época da desova, subirem os rios para se reproduzirem - caso do salmão, do esturjão, da truta. As barragens constituem um obstáculo intransponível para estas espécies, acarretando assim a sua extinção em qualquer lugar onde seja estabelecida uma barragem de grandes proporções. Como consequência, em Portugal o Esturjão (conhecido pelo 'caviar' que constituem as suas ovas) está comprovadamente extinto, e o Salmão e a Truta Marisca estão praticamente desaparecidos. Em todos os casos, o número de indivíduos de uma população diminui drasticamente.
Os peixes cujo ciclo de vida se desenrola apenas em cursos de água doce efectuam também pequenas migrações, para zonas de reprodução específica. No entanto, as condições predilectas são oferecidas por zonas de cascalho, com pequena profundidade e corrente forte ('cascalheiras'). A corrente e a pequena profundidade provocam uma certa turbulência, condições que proporcionam óptimos índices de oxigénio dissolvido e protecção contra predadores, assegurando no seu conjunto uma boa taxa de sobrevivência dos ovos.
A transformação dos rios de água corrente em lagos artificiais tem como consequência a eliminação deste tipo de zonas, com consequências óbvias. Por vezes, tenta-se minimizar este efeito pela introdução de espécies mais adaptadas a sistemas lagunares, como a carpa, a perca, etc. As espécies nativas acabam invariavelmente por ser suplantadas, perdendo a corrida pela sobrevivência - e extinguindo-se. Saliente-se que uma grande parte das espécies piscícolas ibéricas são endémicas, não existindo em qualquer outro local do mundo. O seu desaparecimento acarreta assim aquela fatalidade: para sempre.
As barragens são normalmente implantadas em vales fluviais com margens de grande declive, muitas vezes com zonas escarpadas. Estas constituem um habitat insubstituível para a nidificação de aves de médio e grande porte, tais como a Águia Real, a Águia de Bonelli, o Grifo, o Abutre do Egipto, o Falcão Peregrino, o Bufo Real, a Cegonha Preta. Este facto advém destas aves utilizarem as correntes térmicas ascendentes que se originam em vales encaixados deste tipo, permitindo-lhes deslocarem-se a grandes distâncias. Muitas estão já em perigo de desaparecimento em Portugal.
A todas estas consequências acrescenta-se ainda uma outra, referente à alteração dos regimes naturais de caudal e do transporte dos sedimentos: toda a zona a jusante da barragem sofre com a variação irregular do caudal do rio. Sendo este desviado para utilização agrícola, grande parte da água é perdida por infiltração ou por evaporação. Deixa de existir uma sazonalidade natural na variação do caudal, pelo que muitos organismos, a esta adaptados ao longo da sua evolução de milhares de anos, acabam por não conseguirem sobreviver.
No troço final do rio a diminuição do caudal de água implica uma diminuição do teor de água doce no solo. Isto leva ao aumento da salinidade da água, dos solos e à consequente desertificação. A nível das zonas costeiras, a diminuição de acumulação de sedimentos leva à erosão marinha das costas. Isto implica a necessidade de construção de paredões, que acabarão por necessitar de reforços. Invariavelmente assiste-se ao avanço do mar sobre a terra.
Mas os rios não transportam somente sedimentos - transportam também nutrientes sob variadas formas. A grande variedade biológica que se observa nas zonas costeiras deve a sua proliferação a estas condições. Com a construção de barragens, todos os sedimentos e nutrientes ficam retidos no fundo das albufeiras, desaproveitados e determinando o tempo de vida útil da barragem, atingido quando esta já não tem capacidade para aguentar a gigantesca muralha de sedimentos acumulada (por vezes atinge os 20m). Os nutrientes acabam por ser decompostos anaerobicamente, formando, entre outros, gás metano (com comportamento de efeito de estufa).
Este é um pequeno apanhado das consequências que advêm da construção de qualquer barragem. No caso do Alqueva, acrescem outros factores: o facto de se pretender atingir a vertiginosa cota de 152m implica a inundação não só de zonas escarpadas e de declive acentuado, como zonas com um declive já menos acentuado; nestas, devido a uma área exposta maior, a evaporação aumenta significativamente, sendo questionável se o ganho valerá mesmo a pena. Várias ONGAs (Organizações Não Governamentais para o Ambiente) defendem o enchimento faseado da barragem, e só até à cota de 139m, para permitir uma adaptação das espécies à variação do nível das águas, e também para evitar o abate desnecessário de milhares de árvores. Em números, estima-se que cerca de 1.340.000 árvores serão abatidas (azinheiras, sobreiros, oliveiras, e mais de 100 mil pertencentes à vegetação ribeirinha). Convém não esquecer que Portugal é o maior exportador mundial de cortiça, perdendo assim recursos.
Em relação ao transvase de uma quantidade brutal de água para a bacia hidrográfica do Sado, a situação é, no mínimo, preocupante. Refira-se apenas que não se efectuou ainda qualquer Estudo de Impacto Ambiental que avalie as consequências. Tendo em conta que metade da água de rega fornecida pela barragem do Alqueva acabará na bacia do Sado, tal é absurdo. O rio Sado sofre já hoje uma carga poluente proveniente das águas de regadio existentes na bacia hidrográfica, suspeitando-se que a actividade agrícola é a principal responsável (poluição proveniente da lixiviação de pesticidas e herbicidas). Assim, este problema terá tendência para agravar-se.

A nível de responsabilidades e de competências, o cenário é também preocupante. 
A EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva), responsável pela elaboração dos estudos acima indicados, limitou-se inicialmente a emitir um parecer muito superficial sobre o transvase, cedendo mais informações somente sob uma certa pressão por parte das ONGAs. Foi encomendado um estudo mais aprofundado mas o Ministro do Ambiente José Sócrates afirmou que, independentemente destes resultados, o transvase está decidido e será efectuado. Vale assim a mesma máxima que para as incineradoras: avança-se e ignoram-se os pareceres científicos.

Toda esta problemática revela que as decisões estão bem acima da tutela do Ministério do Ambiente. 
O Projecto Alqueva é necessário para ultrapassar a crise energética iminente (resultado, aliás, de um baixo índice de eficiência energética); é necessário contruir a barragem agora porque posteriormente não haverá quaisquer verbas comunitárias - o Terceiro Quadro Comunitário de Apoio acaba já em 2006; é urgente a construção da barragem para obter as receitas dos impostos (10% do Orçamento de Estado provem de impostos sobre a construção civil - naturalmente, as barragens não estão excluídas). Um governo que não se importa de expandir caoticamente as áreas urbanas, que aliena património natural ao abrigo de direitos adquiridos com o compadrio de autarcas vitalícios, que elabora estudos de impacto ecológico após a construção das obras, demonstra estar viciado em remediações a curto prazo para colmatar as lacunas de uma política que só tem uma classificação: insustentável.

Secção de Ecologia da Associação de Estudantes do IST, in Diferencial (N.º 26) - Março de 2002

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