O debate sobre as barragens é sempre complicado. Perante a emergência das alterações climáticas e o aumento do preço do petróleo, os ecologistas são constantemente encostados à parede pela sua suposta incoerência quando criticam a construção de uma barragem. Se ultrapassarmos a chantagem que consiste em escolher entre a água e o carvão, contudo, podemos analisar o dilema energético de forma mais sensata. Analisemos então as vantagens e desvantagens da opção hidroeléctrica e vejamos se merece ser encarada como uma alternativa ambientalmente correcta aos combustíveis fósseis.
O dilema ecológico
A Directiva-Quadro da Água (2000/60/CE) compromete os países da UE com metas em relação à qualidade da água até ao ano de 2015, prevendo a sua gestão em função de planos de bacia hidrográfica. Perante o investimento em grandes barragens e o impacto que esse investimento terá na qualidade da água dos rios, parece bastante claro que Portugal não vai cumprir esta regra. Num país onde as secas são cada vez mais frequentes, chega ao ponto de ser um crime contra a população o estado desastroso da gestão dos recursos hídricos. O Plano Nacional de Barragens é, aliás, demonstrativo deste ponto, tendo em conta que foi aprovado antes de terem sido aprovados os planos de gestão das bacias hidrográficas.
Não fosse o facto de a qualidade de água piorar imenso com a construção de barragens e até poderia fazer sentido construí-las em zonas agrícolas. O desastre em que resultou a construção da barragem do Alqueva, contudo, devia fazer-nos pelo menos reflectir sobre a viabilidade desta opção. O mesmo se pode dizer, aliás, relativamente à construção de barragens para controlo das cheias, tendo em conta que o seu efeito neste aspecto é pouco claro.
As barragens são também más notícias para a preservação da biodiversidade. Ao impedirem o percurso migratório de numerosas espécies de peixes, levam ao seu desaparecimento. Nas albufeiras, proliferam as espécies exóticas, tendo em conta que o ecossistema se aproxima do de um lago. Para os vertebrados que percorrem as zonas afectadas, o surgimento de uma enorme albufeira onde dantes havia um pequeno rio coloca também um entrave à sua mobilidade. O habitat de muitas espécies animais torna-se assim mais reduzido, aumentado o risco de extinção.
Outro grande inconveniente das barragens que é pouco mencionado é o da redução do caudal sólido. Os rios transportam grandes quantidades de sedimentos ao longo do seu trajecto. Quando desaguam no mar, uma parte uma parte dos sedimentos irá fornecer nutrientes ao mar, essenciais para muitas espécies piscícolas. Outra parte deposita-se na costa, dando origem à areia das praias. Ao impedirmos a circulação dos sedimentos pela construção de represas estamos assim a contribuir para a erosão costeira, potenciando fenómenos como os que assistimos recentemente na Costa da Caparica.
Tudo isto se justifica, dizem os defensores da opção hidroeléctrica, face à necessidade de combater o aquecimento global. Mas as barragens não são neutras em carbono. Nas albufeiras a matéria vegetal decompõe-se a um ritmo superior ao normal, estimulando a produção de metano, um poderoso gás com efeito de estufa. Um estudo recente[1] concluía que as barragens contribuem em 4% para o aquecimento global, tendo em conta estas emissões. Decorrem neste momento outros estudos visando quantificar a contribuição das barragens para a emissão de dióxido de carbono e de óxido nitroso.
O dilema social
Construir uma grande barragem implica quase sempre deslocar populações, sendo frequentes os casos em que povoações inteiras são submersas. As condições em que se efectuam os realojamentos são ilustrativas da forma como se encara o mundo rural. Forçados a abandonar as terras mais férteis, situadas nos vales dos rios, os habitantes da zona afectada pela barragem são deslocados para zonas onde a produtividade agrícola é menor, recebendo em troca uma indemnização cujo valor chega a ser insultuoso. Quanto às esperanças de desenvolvimento, cedo se desvanecem.
As barragens não geram emprego para os locais. Quem constrói as barragens são trabalhadores vindos de fora, frequentemente até de fora do país, trabalhadores esses que são colocados em guettos improvisados, sendo impedidos de ter qualquer contacto com a população local. Uma vez construída a barragem descobre-se rapidamente que o emprego gerado se resume a ... quase zero.
O mesmo se pode dizer das promessas de criação de uma atracção turística. Os dedos das mãos não chegam para contar as albufeiras que se tornaram em pólos dinamizadores de turismo. Por outro lado, deveria ser claro que existe um potencial não explorado de turismo de natureza nas zonas que irão ser submergidas dos rios Sabor e Tua.
O dilema energético
Estamos num país onde o desperdício de energia atinge os 60%. O Governo prefere ignorar este facto, contudo, preferindo apostar em políticas de expansão da oferta, em detrimento da conservação de energia via melhoria da eficiência energética e renovação da (obsoleta) rede eléctrica nacional. É neste contexto que surge o projecto megalómano de construir mais 10 barragens como solução para o dilema energético. Porquê as barragens? Por três grandes motivos.
O primeiro é o da fiabilidade. As renováveis apresentam uma grande desvantagem: a fiabilidade. A cada momento, a quantidade de energia eléctrica que entra na rede tem que ser obrigatoriamente igual à quantidade de energia que é consumida, dado que não temos forma de a armazenar. Ora, regular a energia produzida por uma central termoeléctrica é simples, dado que a produção depende de um combustível. Mas enquanto que uma central a gás natural pode começar a produzir energia à capacidade máxima em dois segundos, é impossível controlar a produção de uma turbina eólica. Isto pode parecer uma questão técnica menor mas é na realidade o maior entrave à expansão das energias renováveis.
Neste ponto entram as barragens. Actualmente é possível construirmos barragens capazes de bombear àgua de jusante para montante. Utilizando esta tecnologia podemos ter um sistema de barragens que nos permita aproveitarmos melhor o potencial da energia eólica. O funcionamento é simples. Entre duas barragens (a principal e uma mais pequena de apoio) armazena-se água durante as horas de cheia. Nas horas em que o consumo de energia é inferior à produção (usualmente, durante a noite) utiliza-se o excesso de energia para bombear de novo a água para a albufeira da barragem, de forma a termos a água ao nosso dispor para produzirmos energia quando necessitarmos. Aquilo que é uma maravilha da engenharia, contudo, é um pesadelo do ponto de vista ambiental. Ao bombearmos água desta forma de um lado para o outro antes de a libertarmos finalmente no rio estamos a exponenciar todos os problemas anteriormente mencionados relativamente à qualidade da água. Tendo em conta que a água que entra na barragem não é a mesma que sai, podemos mesmo dizer que é uma falácia caracterizar esta fonte de energia como renovável.
A fiabilidade da hidroeléctrica é, no entanto, um mito. Os dados apresentados pelo Prof. Bordalo e Sá numa conferência que assisti recentemente[2] são suficientemente elucidativos a este respeito. Se analisarmos a produção de energia das barragens ao longo de um ano ou de um mês assistimos a oscilações sazonais enormes. Mais surpreendentemente ainda, o caudal dos rios e, consequentemente, a produção eléctrica chega a apresentar oscilações consideráveis ao longo de um dia. Tomando como referência o Douro, o rio mais afectado pelas barragens, chegamos a ter várias horas durante a noite em que o caudal é zero, resultado sobretudo da actuação das enormes barragens situadas além da fronteira.
O segundo grande motivo apresentado para o reforço do investimento nas barragens é o da dependência energética. Para nos livrarmos da dependência dos combustíveis fósseis, diz o Governo, temos de expandir imenso a nossa produção de energia proveniente de fontes renováveis e isso implica um grande investimento na energia hídrica. Mas este argumento esbarra num factos que o demente. A maior parte da energia consumida em Portugal destina-se ao sector dos transportes, de onde se conclui que o nosso problema de dependência em relação ao petróleo pouco ou nada tem a ver com a estrutura do nosso sistema energético.
O terceiro motivo é o do aproveitamento do potencial hídrico. Devemos encarar como um desperdício o facto de aproveitarmos apenas metade do potencial energético dos nossos rios. Nada pode ser, do ponto de vista ecológico, mais enganador. Se quisermos viver neste planeta sem enfrentar alterações no meio que nos rodeia que ponham em causa a nossa civilização temos de saber encarar o facto de que não podemos utilizar todos os recursos que temos ao nosso dispor. A maior parte dos rios deverão, portanto, escapar à utilização para produção de energia, da mesma forma que a maior parte dos combustíveis fósseis terão que ser deixados no subsolo. Apenas assim podemos dizer que o conceito de desenvolvimento sustentável é algo mais que um chavão.
O que está em causa
A execução do Plano Nacional de Barragens levará a um acréscimo na produção de electricidade que corresponde a 3,3% do consumo final de 2006, permitindo uma redução nas emissões que, na melhor das hipóteses, representará 1% do valor de base do Protocolo de Quioto[3]. Mesmo estes números poderão estar, contudo, sobre-inflacionados. As recentes estimativas publicadas pelo IV Relatório do IPCC referem uma redução na produção hidroeléctrica até 2070 de 20% a 50%, como resultado das alterações climáticas. Tendo em conta que cada barragem custa 250 a 400 milhões de euros, não me parece que estejamos perante um bom investimento.
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1. Dados da International Rivers.
2. Conferência sobre barragens organizada pela Liga para a Protecção da Natureza, a 29/11, no auditório da Fundação de Serralves, Porto.
3. Parecer da Quercus sobre o Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroeléctrico.
Ricardo Coelho, in EcoBlogue - 10 de Dezembro de 2007
3 comentários:
Então, qual a solução ?
Queimar mais petróleo, carvão e gás ?
não
N
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