Directora da Agência Europeia do Ambiente
Entrevista a Jacqueline McGlade: «Adaptarmo-nos não é construir mais barragens, é viver com o que temos»
McGlade reconhece que os políticos têm vindo a mudar muito e as pessoas estão mais vigilantes
O seu papel é vigiar o ambiente e os governos. À frente da Agência Europeia do Ambiente desde 2003, Jacqueline McGlade lidera dezenas de especialistas que regularmente produzem relatórios sobre o que se passa em 32 países, mas também sobre o resultado das políticas governamentais perante temas como as alterações climáticas, a poluição do ar, a gestão da água ou a biodiversidade.
McGlade vigia-se também a si própria. Em 2004, fez, juntamente com vários ministros europeus, um teste ao seu sangue, que revelou a presença de inúmeros químicos industriais. "Pesticidas, retardantes do fogo, tudo", diz a directora executiva da agência criada pela UE em 1990. Esteve em Lisboa na semana passada, para uma conferência sobre media e ambiente, co-organizada com a Fundação Calouste Gulbenkian e o Instituto de Ciências Sociais.
A Agência Europeia do Ambiente monitoriza, nos seus relatórios, praticamente tudo sobre o ambiente. É ouvida pelos decisores políticos?
Os políticos têm vindo a mudar muito. Têm de prestar mais contas. As pessoas estão mais vigilantes, mais cépticas em relação aos políticos. A voz da agência é ouvida cada vez mais, porque desempenhamos um papel neutro. Não fazemos diagnósticos antes de ter dados. Mas, uma vez que temos a informação, temos uma postura firme e dizemos: "Isto foi o que vocês disseram que iriam fazer e, de acordo com isso, não estão a sair-se muito bem".
Há temas em que a agência é muito crítica sobre o que tem sido feito. Por exemplo, nos transportes.
A nossa função é reportar sobre o ambiente. E um dos maiores impactos sobre o ambiente vem dos transportes. Temos capacidade, temos competência na área e, por isso, é importante que os ministros do Ambiente, por exemplo, compreendam que podem estar a fazer um trabalho brilhante no combate à poluição do ar, mas se a política de transportes não estiver a funcionar nunca vão atingir as suas metas.
Os transportes são uma das maiores preocupações da agência?
A agricultura também, porque representa um fardo muito grande no consumo de água. É uma das maiores forças para as alterações do uso do solo e da biodiversidade.
Num dos vossos relatórios, é mencionado que a Política Agrícola Comum consome 40 por cento do orçamento da UE, mas gera apenas 1,2 por cento do PIB. O que deveria ser feito?
Há dois aspectos na PAC que necessitam de uma atenção particular. Com as alterações climáticas, a agricultura que conhecemos hoje vai ter de ser fundamentalmente modificada. Esta parte do mundo, porém, continuará a ser uma das mais produtivas. E não podemos escapar ao facto de que produzir os nossos próprios alimentos é um elemento extremamente importante na forma como usamos o solo. É por isso que estamos a fazer um esforço para ir além do PIB como medida da riqueza das nações. Poderia haver outros indicadores - segurança alimentar, água, solos, tudo isso importa.
A discussão sobre o que fazemos na Europa vai mudar quando começarmos a ver quanta água é necessária para produzir um carro, quanta água estamos a utilizar na agricultura, quanta área de solo estamos a pôr sob cimento, por causa das estradas. Queremos introduzir, o mais rápido possível, números que mostrem o outro lado da moeda, o custo escondido do PIB.
Uma vez disse que, quando sairmos da recessão económica, ainda estaremos numa recessão ambiental. Porquê?
Já sentimos na Europa uma dívida ecológica, que não está quantificada. O facto de se poder trazer água em navios para Barcelona ou transferir água entre rios; o facto de estarmos a perder polinizadores; o facto de estarmos a perder biodiversidade - e nem sabemos que funções estamos a perder -, de estarmos a perder solos. Estamos a acumular dívida.
Dei um livro ao presidente da Fundação Gulbenkian, chamado Borboletas em Risco. É um atlas de todas as borboletas da Europa hoje e em 2050-2080. O cenário é deprimente. As borboletas são uma pequena e quieta fracção do mundo, mas mantêm muitas das nossas flores, plantas e animais.
Noutro relatório vosso, sobre a água na Europa, uma das mensagens centrais é a de que o preço é muito importante. A situação está a caminhar na direcção certa?
Há países que não fazem contagem do consumo da água e que estão a acordar para o facto de que deveriam fazê-lo. O preço também é muito importante. Mas há mais um elemento: num país como a Turquia, onde uma série de licenças [para uso da água] foi dada para os próximos dez anos para as autoridades que gerem barragens para produção eléctrica, a água provavelmente não estará lá do mesmo modo [como hoje]. É muito difícil para mim compreender como continuamos a gerir infra-estruturas privadas desse modo.
Portugal vai construir dez novas barragens. É boa ideia, se pensarmos que talvez o país tenha menos água no futuro em algumas regiões?
Um bom programa de participação pública no uso da água, de contagem, uma melhor compreensão de como a água é subtraída para a agricultura [tudo isso] deveria ser levado em conta antes de se construírem novas barragens. Vimos barragens a ser construídas por toda a Europa. Também vimos muitas delas a falhar muito rapidamente, porque se encheram com sedimentos, ou ficaram secas, ou porque não funcionam da forma como se esperava. Nestes dias de incerteza sobre a pluviosidade, é muito difícil prever se um grande projecto vai receber a quantidade de água que recebia no passado. Adaptarmo-nos não é tanto construir mais barragens, é mais viver com o que temos.
A vossa agência diz que a biomassa, se utilizada da forma mais eficiente, contribuiria com - no máximo - 5,4 por cento do consumo de combustíveis dos transportes até 2030. Mas a meta europeia é de 10 por cento até 2020. O que falhou na comunicação entre o que vocês acham e o que a UE decidiu?
A decisão foi tomada antes. O número não foi "completamente" tirado do ar, mas foi-o [de alguma forma]. Este é o problema quando temos os políticos sob uma grande pressão para resolver algo muito rapidamente. O que aconteceu, aconteceu. Acho que a reflexão em torno dos biocombustíveis e do seu uso tem sido muito útil, porque está a forçar a Comissão Europeia, os governos e o Parlamento Europeu a definir critérios de sustentabilidade.
Mas estão a aparecer tarde...
Não importa. Se chegarem a esses critérios e decidirem manter aquela meta, então teremos de ser muito mais inteligentes na forma como utilizamos a biomassa. Não estou alarmada. Estarei se vir que não há nenhuma provisão sobre as alterações climáticas nesses cálculos. O que não podemos é ter toda a Hungria, a Polónia e outros países do Leste cobertos com culturas para a produção de biocombustíveis. Isto não vai funcionar.
As emissões de gases com efeito de estufa na UE a 15 caíram, mas basicamente por duas razões: a substituição do carvão no Reino Unido e a modernização da indústria na Alemanha de Leste. O que espera agora?
Espero uma alteração profunda. Vejo uma grande mudança no pensamento de muitos governos. Onde vejo mais mudanças é na indústria. São fascinantes as discussões que tenho com grandes sectores industriais, que estão a promover esta alteração profunda de uma forma muito mais agressiva do que os governos.
Mostra-se preocupada com os organismos geneticamente modificados. Por quê?
Temos um dilema na Europa. De um lado, a posição da Agência Europeia de Segurança Alimentar é a de que os OGM não são prejudiciais à saúde - e eu estou convencida de que isto é verdade. A minha preocupação está mais nos aspectos ambientais. E aí eu vejo uma falta de competência, de capacidade de reunir toda a informação. Estou satisfeita por discutir agora um maior papel da minha agência no debate sobre os OGM.
Quais são os novos alertas ambientais que deviam merecer mais atenção neste momento?
Há um número de produtos químicos que estão a ser autorizados no âmbito do REACH [o registo europeu de químicos]. Alguns são muito perigosos e têm absolutamente de ser registados. Mas outros estão naquele limite do "talvez sejam perigosos". O problema é que, quando são libertados para o ambiente, aí são realmente danosos, porque se acumulam.
Eu diria que a minha preocupação número um está num grupo de químicos que ninguém se importaria de ter num armário debaixo da pia da cozinha, mas que, quando começam a ser utilizados em quantidade e a acumularem-se na água, aí temos um problema em mãos. Vamos também olhar cuidadosamente para os telemóveis e as linhas de alta tensão. Há alguns químicos agregados aos plásticos que nos preocupam. Poluição do ar interior também é um grande tema para nós.
McGlade vigia-se também a si própria. Em 2004, fez, juntamente com vários ministros europeus, um teste ao seu sangue, que revelou a presença de inúmeros químicos industriais. "Pesticidas, retardantes do fogo, tudo", diz a directora executiva da agência criada pela UE em 1990. Esteve em Lisboa na semana passada, para uma conferência sobre media e ambiente, co-organizada com a Fundação Calouste Gulbenkian e o Instituto de Ciências Sociais.
A Agência Europeia do Ambiente monitoriza, nos seus relatórios, praticamente tudo sobre o ambiente. É ouvida pelos decisores políticos?
Os políticos têm vindo a mudar muito. Têm de prestar mais contas. As pessoas estão mais vigilantes, mais cépticas em relação aos políticos. A voz da agência é ouvida cada vez mais, porque desempenhamos um papel neutro. Não fazemos diagnósticos antes de ter dados. Mas, uma vez que temos a informação, temos uma postura firme e dizemos: "Isto foi o que vocês disseram que iriam fazer e, de acordo com isso, não estão a sair-se muito bem".
Há temas em que a agência é muito crítica sobre o que tem sido feito. Por exemplo, nos transportes.
A nossa função é reportar sobre o ambiente. E um dos maiores impactos sobre o ambiente vem dos transportes. Temos capacidade, temos competência na área e, por isso, é importante que os ministros do Ambiente, por exemplo, compreendam que podem estar a fazer um trabalho brilhante no combate à poluição do ar, mas se a política de transportes não estiver a funcionar nunca vão atingir as suas metas.
Os transportes são uma das maiores preocupações da agência?
A agricultura também, porque representa um fardo muito grande no consumo de água. É uma das maiores forças para as alterações do uso do solo e da biodiversidade.
Num dos vossos relatórios, é mencionado que a Política Agrícola Comum consome 40 por cento do orçamento da UE, mas gera apenas 1,2 por cento do PIB. O que deveria ser feito?
Há dois aspectos na PAC que necessitam de uma atenção particular. Com as alterações climáticas, a agricultura que conhecemos hoje vai ter de ser fundamentalmente modificada. Esta parte do mundo, porém, continuará a ser uma das mais produtivas. E não podemos escapar ao facto de que produzir os nossos próprios alimentos é um elemento extremamente importante na forma como usamos o solo. É por isso que estamos a fazer um esforço para ir além do PIB como medida da riqueza das nações. Poderia haver outros indicadores - segurança alimentar, água, solos, tudo isso importa.
A discussão sobre o que fazemos na Europa vai mudar quando começarmos a ver quanta água é necessária para produzir um carro, quanta água estamos a utilizar na agricultura, quanta área de solo estamos a pôr sob cimento, por causa das estradas. Queremos introduzir, o mais rápido possível, números que mostrem o outro lado da moeda, o custo escondido do PIB.
Uma vez disse que, quando sairmos da recessão económica, ainda estaremos numa recessão ambiental. Porquê?
Já sentimos na Europa uma dívida ecológica, que não está quantificada. O facto de se poder trazer água em navios para Barcelona ou transferir água entre rios; o facto de estarmos a perder polinizadores; o facto de estarmos a perder biodiversidade - e nem sabemos que funções estamos a perder -, de estarmos a perder solos. Estamos a acumular dívida.
Dei um livro ao presidente da Fundação Gulbenkian, chamado Borboletas em Risco. É um atlas de todas as borboletas da Europa hoje e em 2050-2080. O cenário é deprimente. As borboletas são uma pequena e quieta fracção do mundo, mas mantêm muitas das nossas flores, plantas e animais.
Noutro relatório vosso, sobre a água na Europa, uma das mensagens centrais é a de que o preço é muito importante. A situação está a caminhar na direcção certa?
Há países que não fazem contagem do consumo da água e que estão a acordar para o facto de que deveriam fazê-lo. O preço também é muito importante. Mas há mais um elemento: num país como a Turquia, onde uma série de licenças [para uso da água] foi dada para os próximos dez anos para as autoridades que gerem barragens para produção eléctrica, a água provavelmente não estará lá do mesmo modo [como hoje]. É muito difícil para mim compreender como continuamos a gerir infra-estruturas privadas desse modo.
Portugal vai construir dez novas barragens. É boa ideia, se pensarmos que talvez o país tenha menos água no futuro em algumas regiões?
Um bom programa de participação pública no uso da água, de contagem, uma melhor compreensão de como a água é subtraída para a agricultura [tudo isso] deveria ser levado em conta antes de se construírem novas barragens. Vimos barragens a ser construídas por toda a Europa. Também vimos muitas delas a falhar muito rapidamente, porque se encheram com sedimentos, ou ficaram secas, ou porque não funcionam da forma como se esperava. Nestes dias de incerteza sobre a pluviosidade, é muito difícil prever se um grande projecto vai receber a quantidade de água que recebia no passado. Adaptarmo-nos não é tanto construir mais barragens, é mais viver com o que temos.
A vossa agência diz que a biomassa, se utilizada da forma mais eficiente, contribuiria com - no máximo - 5,4 por cento do consumo de combustíveis dos transportes até 2030. Mas a meta europeia é de 10 por cento até 2020. O que falhou na comunicação entre o que vocês acham e o que a UE decidiu?
A decisão foi tomada antes. O número não foi "completamente" tirado do ar, mas foi-o [de alguma forma]. Este é o problema quando temos os políticos sob uma grande pressão para resolver algo muito rapidamente. O que aconteceu, aconteceu. Acho que a reflexão em torno dos biocombustíveis e do seu uso tem sido muito útil, porque está a forçar a Comissão Europeia, os governos e o Parlamento Europeu a definir critérios de sustentabilidade.
Mas estão a aparecer tarde...
Não importa. Se chegarem a esses critérios e decidirem manter aquela meta, então teremos de ser muito mais inteligentes na forma como utilizamos a biomassa. Não estou alarmada. Estarei se vir que não há nenhuma provisão sobre as alterações climáticas nesses cálculos. O que não podemos é ter toda a Hungria, a Polónia e outros países do Leste cobertos com culturas para a produção de biocombustíveis. Isto não vai funcionar.
As emissões de gases com efeito de estufa na UE a 15 caíram, mas basicamente por duas razões: a substituição do carvão no Reino Unido e a modernização da indústria na Alemanha de Leste. O que espera agora?
Espero uma alteração profunda. Vejo uma grande mudança no pensamento de muitos governos. Onde vejo mais mudanças é na indústria. São fascinantes as discussões que tenho com grandes sectores industriais, que estão a promover esta alteração profunda de uma forma muito mais agressiva do que os governos.
Mostra-se preocupada com os organismos geneticamente modificados. Por quê?
Temos um dilema na Europa. De um lado, a posição da Agência Europeia de Segurança Alimentar é a de que os OGM não são prejudiciais à saúde - e eu estou convencida de que isto é verdade. A minha preocupação está mais nos aspectos ambientais. E aí eu vejo uma falta de competência, de capacidade de reunir toda a informação. Estou satisfeita por discutir agora um maior papel da minha agência no debate sobre os OGM.
Quais são os novos alertas ambientais que deviam merecer mais atenção neste momento?
Há um número de produtos químicos que estão a ser autorizados no âmbito do REACH [o registo europeu de químicos]. Alguns são muito perigosos e têm absolutamente de ser registados. Mas outros estão naquele limite do "talvez sejam perigosos". O problema é que, quando são libertados para o ambiente, aí são realmente danosos, porque se acumulam.
Eu diria que a minha preocupação número um está num grupo de químicos que ninguém se importaria de ter num armário debaixo da pia da cozinha, mas que, quando começam a ser utilizados em quantidade e a acumularem-se na água, aí temos um problema em mãos. Vamos também olhar cuidadosamente para os telemóveis e as linhas de alta tensão. Há alguns químicos agregados aos plásticos que nos preocupam. Poluição do ar interior também é um grande tema para nós.
Entrevista de Ricardo Garcia, in Público - 7 de Abril de 2009
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