BARRAGENS - NEGÓCIOS
A quem
aproveita?
Os 26 factos ainda sem
resposta no negócio das barragens
Docente da FEP e sócio fundador do OBEGEF
Docente da FEP e sócio fundador do OBEGEF
Seria desejável compreender o motivo pelo qual o Estado não o exerceu o direito de preferência na venda das barragens. (...) Todos os impostos são devidos neste negócio, o IMI, o IMT, o imposto do selo e o IRC, não se aplicam benefícios fiscais e existem sólidos indícios da prática de crime de fraude fiscal
No
passado dia 19, em representação do Movimento Cultural da Terra de Miranda
(MCTM), Alberto Fernandes, José Maria Pires e eu próprio prestamos declarações
na 5ª Comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República, no âmbito
do negócio entre a EDP e a ENGIE e, em particular, no âmbito do subsequente
processo de Inquérito levantado contra José Maria Pires. Nesta crónica pretendo
dar conta dos 26 factos que o MCTM ainda hoje não compreende, mas que o futuro
se encarregará de nos explicar.
Estivemos presentes porque um órgão do Estado Português, a Autoridade Tributária (AT), decidiu abrir um inquérito disciplinar a um cidadão que se empenhou na defesa da sua Terra e do seu país, cumprindo uma missão cívica, que ao mesmo tempo é um direito e um dever constitucional – 1º facto, o processo. Estivemos na casa da democracia, perante as Senhoras e Senhores Deputados, para dizer que entendemos esse processo como uma afronta, algo que pensávamos impossível numa democracia madura.
Quem mandou instaurar o processo fê-lo
sobre um documento entregue por um grupo de cidadãos ao Senhor Presidente da
República, a seu pedido. Assim sendo, pergunto-me: como se sentirão os cidadãos
que fizerem doravante o mesmo? Esse documento foi elaborado a pedido, expresso
e pessoal do Senhor Ministro do Ambiente. Quem abriu o processo justificou-se
falsamente que esse documento era um parecer jurídico – 2º facto, o não
parecer. Basta olhar para ele para se saber que não o é, o Governo sabia que
não era e a AT para além de saber que não era, sabia também da participação
cívica do José Maria Pires no MCTM.
A menos que o contrário seja provado,
considero que o objetivo deste processo foi apenas um: calar um movimento
cívico, o que é inaceitável numa democracia – 3º facto, a motivação para o
suposto desejo de silenciar.
Dizem-nos que o processo foi arquivado.
Mas, de facto, não foi. Teve uma consequência sancionatória. A Diretora Geral
da AT determinou três consequências para o José Maria Pires que não se entendem
nem se aceitam: não pode intervir em procedimentos da AT sobre o negócio da
venda das barragens – 4º facto; não pode intervir em nenhum outro procedimento
de qualquer contribuinte sobre idêntica factualidade – 5º facto; não pode
intervir em nenhum outro procedimento a que sejam aplicáveis as mesmas normas
legais aplicáveis à venda das barragens – 6º facto.
Foi lançada sobre o José Maria Pires uma
suspeição generalizada, que é inaceitável e inconstitucional, prejudicando
gravemente os seus direitos constitucionais. Nunca mais, na AT, se deve
pronunciar acerca de nada que possa ter a ver com o negócio da EDP. O que
potencialmente o impede de fazer seja o que for. Além disso, esta verdadeira
sanção é para toda a vida, porque não tem nenhum limite temporal – 7º facto.
Assim, um dos mais qualificados juristas portugueses em matéria fiscal é
silenciado para sempre no seio da própria AT, onde já prestou dos mais
relevantes serviços ao país.
Este comportamento inaceitável da AT está em linha com outros, de todos os organismos dependentes do Governo que intervieram no negócio da EDP, e que têm que ser esclarecidos.
Desde logo, do Senhor Ministro do Ambiente
que: por um lado, alega que autorizou o negócio da venda das barragens do Douro
Internacional apenas na componente ambiental do negócio, porque a matéria
fiscal não é da sua competência, mas, por outro lado, declarou, 10 dias depois
do negócio, que o que ele autorizou não estava sujeito ao pagamento de impostos
– 8º facto; autorizou um negócio montado para fugir ao pagamento de impostos,
apesar de estar avisado e consciente disso – 9º facto; não exigiu a revisão do
valor da concessão, como condição da sua autorização, como devia, face à
prorrogação de 2007, de Manuel Pinho, por um valor (660 milhões de euros)
inferior em mais de mil milhões de euros ao valor real das barragens (1.700
milhões de euros) – 10º facto; autorizou a EDP a vender as barragens,
quando esta estava em incumprimento generalizado e reiterado das suas
obrigações contratuais emergentes do próprio contrato de concessão,
nomeadamente em termos ambientais – 11º facto; insultou e denegriu
publicamente o MCTM – 12º facto.
Mas também do Senhor Secretário de Estado
dos Assuntos Fiscais que: promoveu uma alteração legislativa, no artigo 60.º do
Estatuto dos Benefícios Fiscais, que assenta como uma luva aos interesses da
EDP no negócio – 13º facto; acompanhou o Senhor Ministro do Ambiente na
extraordinária declaração de que um dos maiores negócios do século, em
Portugal, estava isento de todos os impostos – 14º facto.
Da Agência Portuguesa do Ambiente que:
aceita e concorda que, em conformidade com o interesse da EDP, umas vezes as
barragens do Douro Internacional sejam consideradas bens do domínio público e
noutras bens privados da própria EDP – 15º facto; aceitou que a EDP
transmitisse as concessões das barragens a uma empresa fictícia, que a própria
EDP lhe anunciou que duraria apenas 100 dias – 16º facto; fez ressuscitar, como
que por milagre, o direito de bombagem da água do rio Douro para o Sabor e o
Tâmega, colocando estes rios a correr contrário ao longo de vários quilómetros,
sem qualquer contrapartida para o Estado – 17º facto; validou um negócio que é
uma clara construção abusiva para fugir ao pagamento de impostos – 18º facto;
apesar de ter informado a AT de que as barragens eram bens do domínio público
e, como tal intransmissíveis, permitiu a sua transmissão duas vezes, pela EDP e
pela Engie, neste negócio – 19º facto.
Da Direção Geral do Tesouro e das Finanças
(DGTF) que, chamada a pronunciar-se sobre os interesses patrimoniais e
financeiros do Estado no negócio disse que não tinha tempo nem conhecimento
para fazer essa análise, mas permitiu que ele se realizasse – 20º facto;
Da Parpública que fez o mesmo
que a DGTF – 21º facto.
Da AT, que, pela mão da mesma Diretora Geral: despachou no sentido de que um negócio de venda de barragens paga imposto do selo e, de seguida, sobre o mesmo negócio vem dizer exatamente o contrário – 22º facto; despachou no sentido de que as barragens que estão no balanço das concessionárias devem pagar IMI e, menos de um ano depois, veio dizer o contrário, curiosamente, num processo da EDP – 23º facto.
Dos tribunais arbitrais que, aparentemente,
manipularam a distribuição de um processo de impugnação da EDP contra a
liquidação do IMI de uma das barragens do Douro Internacional, entregando-o a
uma árbitra, que é também advogada e que decidiu quase sempre individualmente a
favor dos impugnantes – 24º facto; decidiu a favor da EDP, dizendo serem bens
do domínio público prédios que estavam no Balanço da EDP como bens privados,
que na realidade são – 25º facto.
A esses factos, acrescem ainda um outro.
Seria desejável compreender o motivo pelo qual o Estado não o exerceu o direito
de preferência na venda das barragens – 26º facto. Efetivamente, tanto quanto
se sabe, o Estado nem sequer terá estudado as vantagens e os eventuais
inconvenientes no seu exercício, podendo assim ter lesado o interesse público.
Todos estes comportamentos, estranhos,
diria mesmo bizarros, sistematicamente contra o interesse público, praticados
por aqueles a quem cabe defendê-lo, são inadmissíveis, e sempre a favor da EDP.
Até agora, não compreendemos o racional desses comportamentos, mas, como disse
acima, estamos convictos que o viremos a conhecer, embora não se saiba quando.
O MCTM tem a certeza de que todos os
impostos são devidos neste negócio, o IMI, o IMT, o imposto do selo e o IRC,
que não se aplicam benefícios fiscais e que existem sólidos indícios da prática
de crime de fraude fiscal. Mas temos dúvidas se estas instituições, que são as
mesmas a quem cabe aplicar a lei, sejam capazes de o fazer, como o fazem a
qualquer cidadão.
Por isso, pelas nossas dúvidas, aceitamos o
convite para prestar declarações na 5ª Comissão de Orçamento e Finanças, na
Assembleia da República, e fomos pedir às Senhoras e aos Senhores Deputados que
continuem a sua ação de escrutínio e, também, dizer que confiamos que a
intervenção da Procuradoria Geral da República nas investigações venha a fazer
imperar o Estado de Direito neste negócio.
Óscar Afonso (Docente da FEP e sócio fundador do OBEGEF), in Expresso – 26 de Julho de 2021