sábado, 23 de setembro de 2006

Manuel Alegre: "Por uma nova cultura da água"

Manuel Alegre em Viana do Castelo
"Por uma nova cultura da água"

Intervenção feita no Encontro “Água: Mercadoria ou Direito Humano” promovido pelo MIC


A água é o suporte básico da vida no nosso planeta e surgiu muito antes da existência dos seres humanos. É e sempre foi considerada um bem público.

1.
Faz amanhã um ano que anunciei publicamente em Águeda a intenção de me candidatar às eleições para a Presidência da República. Disse então que alargar a cidadania era o sentido do meu combate. No meu Contrato Presidencial e ao longo de toda a campanha insisti na necessidade da afirmação do poder dos cidadãos. A resposta que tive nas urnas mostrou que mais de um milhão de portugueses corresponderam a esse apelo. Disse também que a nossa Constituição consagra um conjunto de direitos fundamentais que não podem ser esquecidos, incluindo neles o direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado. Não podia por isso deixar de estar presente nesta iniciativa do MIC de Viana do Castelo, destinada a debater a Água, um dos principais problemas do século XXI.

2.
A água é o suporte básico da vida no nosso planeta e surgiu muito antes da existência dos seres humanos. É e sempre foi considerada um bem público.
Um em cada seis habitantes do planeta não tem acesso à água potável, enquanto um em cada três não dispõe de condições sanitárias adequadas. Isto significa que uma grande parte da humanidade não tem garantidas condições mínimas de acesso à vida e à saúde.
A desigualdade no acesso à água potável é muito grande. A classe média ou alta das cidades consome 50 a 150 litros por dia e por pessoa, ou mais, enquanto os habitantes dos bairros ou países pobres têm de se contentar com 5 a 10 litros. Nesses locais é sobre as mulheres e as crianças que recai a tarefa pesada de garantir o abastecimento diário de agua potável.

3.
Em Portugal, em 2003, 92 % da população estava servida por uma rede pública de abastecimento de água potável, embora haja uma grande desigualdade regional. Na Região Norte, apesar da maior quantidade de recursos hídricos, a percentagem descia para 82,9%, enquanto em Lisboa subia para 99,1%. É de frisar que no Alentejo a percentagem, de 95%, é mais elevada que no norte do país.
Quanto ao acesso à rede pública de águas residuais, a taxa de cobertura era de apenas 73,5%. O Norte, com 59,6%, tem valores inferiores à média nacional.
Em termos comparativos, Portugal situa-se a meio da tabela, entre os países desenvolvidos, com uma taxa de cobertura de saneamento de 98%, e os países em desenvolvimento, com 49%.
Isto significa que também em Portugal há ainda um caminho a percorrer para garantir que toda a população tem acesso a água potável de qualidade e a redes de saneamento básico eficientes.

4.
A emergência do pensamento científico no final do século XVI instaurou na relação entre o homem e a natureza o paradigma do domínio. Para o filósofo e cientista Francis Bacon, contemporâneo de Descartes, "o conhecimento é em si mesmo um poder” que permite conquistar e dominar a natureza. Sabemos hoje que este domínio não pode ser ilimitado. A destruição e esgotamento dos recursos naturais, as alterações climáticas, o aquecimento global e a ruptura dos ecossistemas ameaçam a sobrevivência, não apenas da humanidade, mas da própria vida.
Um dos grandes desafios do século XXI é o da nossa reconciliação com a natureza. Não somos donos da Terra, estamos de passagem e somos devedores de gerações que ainda não nasceram. É essa a essência do conceito de sustentabilidade: encontrar modos de desenvolvimento que não ponham em causa a possibilidade de vida e bem-estar no futuro.

5.
Em muitos países europeus, as visões liberais do século XIX impuseram um processo de venda de património natural, incluindo recursos hídricos, com a convicção de que era o único modelo de produção possível.
No início do século XX, com o desenvolvimento da engenharia e com a crise de 1929, a maioria das responsabilidades na gestão da água passou para o controle público. O Estado surgiu como promotor de grandes barragens e garante do acesso à água, tanto no fornecimento urbano como no uso industrial e na irrigação.
Nos anos 80, este modelo mostrou os primeiros sinais de crise. A construção mundial de mais de 50.000 barragens de larga escala rompeu a continuidade de uma grande maioria dos rios causando um impacto irreversível no ciclo natural da água. Este impacto foi agravado pelo crescimento das áreas urbanas, pela impermeabilização dos solos e pela contaminação das águas superficiais e subterrâneas. É nas águas doces continentais que se regista o maior número de espécies extintas ou em extinção.

6.
Os nossos rios já não são os nossos rios. Já não aprendemos a nadar nas suas águas. Já não se encontra no rio Lima a quantidade de lampreia que lhe deu fama.
Não se trata apenas de uma nostalgia do que foi: os rios que nos viram nascer e crescer podem perder-se para sempre. Heraclito de Éfeso terá sido o primeiro ocidental a constatar que “tudo flui” ("Panta rhei") e por isso tudo muda. “Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele”, disse ele. Hoje sabemos que não é apenas o rio, nem somos apenas nós próprios que mudamos. É o próprio ciclo natural da água que corre o risco de colapsar, com consequências desastrosas para todas as formas de vida.

7.
Independentemente do estatuto de propriedade da água, tem prevalecido na Europa a tendência do uso do direito ao licenciamento, cabendo ao Estado garantir a democratização do acesso à água. A maioria das águas de superfície são do domínio público, podendo ser concedido o direito à sua exploração para vários fins. Quanto às água subterrâneas, em Portugal elas são geralmente propriedade privada, enquanto em Espanha, pelo contrário, são do domínio público.
Durante muito tempo a legislação sobre as diferentes formas de exploração dos recursos hídricos ignorou o ciclo da água. Mas o uso excessivo de furos e sistemas de bombagem e as descargas de efluentes sem tratamento mostraram ser métodos insustentáveis. Na Europa central e setentrional, foi preciso desencadear operações dispendiosas para restaurar a vida em rios tornados mortíferos por usos errados.
A contaminação por pesticidas e químicos usados na agricultura também atinge proporções crescentes. Mais de dois terços dos países europeus sofrem de uma poluição generalizada nas suas águas subterrâneas. Em Portugal e nas zonas mediterrânicas, a extracção abusiva de águas subterrâneas tem conduzido à salinização progressiva, ao esgotamento de reservas de água doce, à secagem de fontes e à diminuição dos fluxos de água, agravando a desertificação. A expansão do eucalipto contribui para a diminuição drástica dos recursos hídricos.
Pobreza e ignorância, juntamente com a irresponsabilidade de entidades públicas e privadas, completam o ciclo da degradação e crise ecológica nos ecossistemas da água.

8.
Os processos de alteração climática estão a provocar um aumento gradual das temperaturas e a modificar o regime das chuvas. Há cada vez mais episódios extremos, como cheias catastróficas ou alterações substanciais nos níveis da água em períodos de seca. É preciso dar toda a prioridade à conservação e restauração da qualidade ecológica dos recursos hídricos. O princípio do poluidor-pagador tornou-se insuficiente. É muito mais barato e eficaz evitar a poluição na origem do que descontaminar. É preciso generalizar o princípio da precaução na gestão e uso da água.

9.
Impõe-se uma mudança cultural profunda. Temos de alterar a nossa escala de valores, a nossa concepção da natureza e os nossos estilos de vida. Trata-se no fundo da emergência de uma nova cultura da água, que reconheça as suas múltiplas dimensões, éticas, ambientais, políticas e até emocionais. A nova cultura da água baseia-se no princípio universal do respeito pela vida, considera os recursos hídricos, no seu todo, como património da biosfera e exige que eles sejam geridos e utilizados de forma democrática e sustentável.
É isto que pretende a Declaração Europeia para um nova Cultura da Água, aprovada em Fevereiro deste ano em Madrid, na sequência da aprovação pela União Europeia da Directiva Quadro da Água, de 2000, transposta para a lei portuguesa pela [/]Lei Quadro da Água, de 2005.(1)

10.
A Declaração Europeia para um nova Cultura da Água defende uma nova abordagem ética da água e estabelece novas prioridades.
A primeira prioridade é “Água para viver”. Assegurar a sobrevivência do ser humano através do acesso à agua potável deve ser um direito humano universal, na linha do que já foi expressamente reconhecido pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas em 2002.(2)
Não se trata apenas de um direito individual. A lógica do neo-liberalismo tem vindo a agravar as desigualdades entre países ricos e países pobres. Muitas empresas, impedidas de poluir os recursos aquíferos nos seus países, sentem-se livres para o fazer nos países pobres ou em desenvolvimento, praticando um inadmissível “dumping” sócio-ambiental.
As funções da água na preservação da saúde pública, da coesão social e da equidade devem ser por isso a segunda prioridade. Trata-se no fundo de reconhecer o direito colectivo das comunidades ao usufruto e sustentabilidade dos seus próprios recursos hídricos.
A função da água no desenvolvimento económico, associada ao seu uso por entidades privadas, é a terceira prioridade. Mas a intervenção dos agentes económicos privados não pode ser dissociada dos objectivos sociais e ambientais globais. Também neste campo a responsabilidade social das empresas será um factor cada vez mais determinante.
Em suma, é preciso garantir a prioridade dos direitos humanos e sociais sobre os interesses de mercado e impedir o recurso à água para negócios ilegítimos, ou a sua utilização abusiva e irresponsável.

11.
Uma dimensão essencial da nova cultura da água é a democratização dos processos de decisão. O debate sobre a liberalização dos serviços de água deve ser alargado a todos, com a participação dos cidadãos e das suas organizações.
É necessário distinguir entre privatização, liberalização e desregulamentação. A privatização implica a transformação do estatuto jurídico do operador, a venda de recursos públicos ao sector privado ou a concessão da totalidade dos direitos de uso. A liberalização significa introduzir mecanismos de mercado na gestão da água. Finalmente, a desregulamentação significa reduzir a intervenção do Estado.
É útil recordar que os processos de liberalização quase sempre implicam o aumento do poder regulador do Estado, com a criação de entidades reguladoras, a definição de obrigações de serviços públicos e a protecção do consumidor.

12.
Em 2002, pronunciei-me contra o anúncio pelo governo de coligação PSD-PP de várias privatizações, entre elas a da água. Escrevi então que “a questão de saber se sectores económicos estratégicos devem permanecer ou não sob controle português não é uma questão ideológica, nem pode ser reduzida a uma polémica entre partidários do sector privado e defensores do sector público. Trata-se de uma questão nacional, de cuja solução pode depender o futuro e a viabilidade de Portugal.” E acrescentei que “só há uma maneira de garantir que esses sectores continuem portugueses, é manter sobre eles o controle do Estado”. Continuo a pensar o mesmo. O reequilíbrio orçamental não pode fazer-se à custa da sobrevivência do país.

13.
Em 2005, em plena campanha para a Presidência da República, admiti a possibilidade de recorrer a todos os poderes presidenciais para defender o direito à água, incluindo, se necessário, a dissolução da AR. Fui então muito atacado, com base no argumento de que já teria aprovado a privatização da água, ao votar a Lei Quadro da Água na Assembleia. O argumento foi intelectualmente desonesto. As leis da água então votadas não obrigam à privatização da água. Defendo que a água se deve manter no domínio e propriedade pública. A existência de concessões para a distribuição da água, que a lei permite, não significa desistir de garantir, a par de uma gestão racional e sustentável, o controle público da exploração. Pelo contrário, aumenta a necessidade da nossa vigilância.
Não estamos a discutir a “privatização” da água dos rios, das ribeiras, dos lagos, nem do mar, mas sim dos sistemas de distribuição. Qualquer concessão cem por cento privada da distribuição da água significaria transformar um monopólio natural num monopólio privado, o que é inaceitável. Mas a mercantilização da água captada é um facto inegável. Todos pagamos a água engarrafada que bebemos e a factura da água canalizada no fim do mês.
A ideia de que as empresas privadas, por definição, gerem sempre melhor que as entidades públicas é um dogma que não resiste à análise dos casos concretos. Os serviços públicos também podem servir com qualidade. Seja como for, o que é imprescindível é que haja controle e regulação por parte do Estado. E que as organizações de consumidores estejam atentas, quer quanto à qualidade da água, quer quanto à equidade das tarifas praticadas.

14.
Serão cada vez maiores os conflitos políticos e geoestratégicos por causa do acesso à água. A nova cultura de água é uma das dimensões essenciais de uma diplomacia de paz, baseada em valores de diálogo e envolvimento, que deverá incentivar a mediação dos conflitos internacionais acerca da água.
Espero que movimentos de cidadãos como o MIC tenham uma capacidade crescente para colocar na agenda temas como este, que são fulcrais para todos nós.
O poder dos cidadãos está a emergir um pouco por todo o lado, desde os Estados Unidos à França, passando por Portugal. Um filme de Al Gore sobre a sustentabilidade do planeta está nas salas de cinema em todo o mundo. Não é um simples documentário: é um verdadeiro manifesto eleitoral do cidadão Al Gore, com vista à sua candidatura em 2008.
A cidadania do século XXI passa por estes temas e pela capacidade auto-organizativa e participativa dos cidadãos. Para garantir o acesso à água como direito humano, não bastam proclamações das Nações Unidas ou novas leis. É preciso uma nova cultura, uma nova atitude e uma nova prática da cidadania. Como disse o poeta João Cabral de Melo Neto, “um rio precisa de muito fio de água / para refazer o fio antigo que o fez.”


(1) Esta lei define um conjunto de princípios essenciais para preservar um bem que é escasso e a cujo acesso todos devem ter direito em condições de equidade. Define ainda um novo modelo de gestão da água, baseado em Administrações Regionais associadas às bacias hidrográficas. O Minho, atravessado por quatro rios, dois dos quais internacionais, é uma das zonas do país em que a aplicação desta lei quadro tem maior relevância.

(2) Recorde-se que as Nações Unidas aprovaram em 2005 a resolução “Água para a Vida”, que proclamou uma nova década internacional da água, entre 2005 e 2015.

in ManuelAlegre - 23 de Setembro de 2006