O risco e as barragens
Resumo: Em Portugal existe um grande número de pessoas a residir em vales a jusante de barragens. Assim, o desenvolvimento de metodologias para apoio à gestão integrada do risco nestes vales é de grande interesse prático para a protecção da população. O presente artigo divide-se essencialmente em duas partes. A primeira parte é dedicada à avaliação do risco que surge na sequência das cheias induzidas por acidentes nas barragens. A segunda parte versa sobre a mitigação do risco, através de um planeamento de emergência: interno, a nível da barragem, e externo, a nível do vale a jusante.
Palavras chave: Rotura de barragens. Gestão do risco. Plano de emergência
Abstract:
Risk management in dams downstream valleys
An important percentage of the Portuguese population lives in dam-break flood prone areas. Thus the development of methodologies to support dam flood risk management is a practical issue for the public safety. This article is divided in two main areas. First, the assessment of the risk induced by dam-break-floods. The second part of the article is focused on the risk mitigation involving emergency planning: internal emergency planning, at the dam level, and external emergency planning, at the downstream valley.
Key words: Dam failure. Risk management. Emergency action plan.
Introdução
A origem da palavra risco é obscura. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Machado, 1990), recorrendo ao dicionário Coraminas (Coraminas, 1954), considera que esta unidade lexical tem a sua génese ligada à do castelhano “risco” (outrora “riesco”), cujo significado corresponde ao de penhasco escarpado ou precipício e que designa, por extensão, o perigo que corria quem transitasse por estes lugares ou o navegante que se aproximasse de um escolho.
Tudo o que é receado por poder conduzir a prejuízos ou perdas designa-se vulgarmente como sendo um risco. O conceito “risco” é multifacetado ou multi-dimensional e, tal como outras grandezas, é objecto de atenção sob diferentes pontos de vista e disciplinas científicas existindo, por isso, diversas definições.
Assim, do ponto de vista das ciências sociais, é possível encontrar a seguinte descrição (Jaeger et al., 2001): “risco corresponde a uma situação ou evento em que algo com valor para os humanos (incluindo nomeadamente os humanos) é colocado em jogo e onde os resultados das ocorrências são incertos.”
Na ciência jurídica as definições podem ser do seguinte tipo (Gomes, 2002):
• “possibilidade de obtenção de um proveito para uma das partes, que tem como contrapartida a ocorrência de um prejuízo na esfera jurídica de outra parte…
• possibilidade de ocorrência de um evento que pode pôr em causa as perspectivas de ganho de qualquer das partes relativamente ao contrato…”
Do ponto de vista técnico, e no âmbito das ciências da natureza, o conceito do risco pode ser definido como o valor expectável de perdas ou danos decorrentes de um acontecimento num determinado período de tempo. É esta a definição que se aplica na Engenharia a qual envolve probabilidades de ocorrência e perdas associadas.
De entre as diversas interpretações alargadas do conceito de risco, o presente trabalho adopta-se seu aspecto mais simples patente nas ciências da natureza e que associa o risco “à eventualidade de perdas”. Este aspecto do conceito de risco é comummente aceite e adoptado pelos diversos serviços de segurança de barragens e de protecção civil a nível internacional. Esta definição assenta na análise probabilística de risco, sendo portanto, em termos matemáticos, o risco estimado como o produto da probabilidade de ocorrência pelas consequências.
De acordo com esta última definição é possível constatar que, associado ao conceito de risco, se encontram outros dois conceitos: o de incerteza e o de consequências. O significado de risco como está definido na prática de segurança de barragens (Regulamento de Segurança de Barragens (RSB), 2007), incorpora, como se verá, também estes dois conceitos quando se refere à incerteza acerca da ocorrência de um qualquer evento (eventualidade, possibilidade ou probabilidade) e às consequências negativas (perdas, danos) no caso do risco se concretizar.
As pessoas toleram os riscos no seu dia-a-dia, com relutância ou entusiasmo, conscientemente ou não. Com efeito, todas as actividades humanas implicam riscos, embora estes variem muito na sua magnitude e nas suas consequências que podem ser expectativas de ganhos (área financeira) ou de danos e prejuízos (área da protecção civil). Em termos práticos, o risco avulta, essencialmente, nas actividades perigosas (nomeadamente as que se praticam em determinadas indústrias) mas, também está presente em actividades de rotina como nos transportes terrestres, marítimos e aéreos. Os inúmeros riscos a que está sujeito o indivíduo ou a sociedade em geral podem ser basicamente subdivididos nas seguintes categorias:
• os riscos naturais (sendo a maioria considerados não evitáveis), tais como as doenças ou a ocorrência de relâmpagos; muitas vezes estes são ainda riscos inconscientes ou riscos desconhecidos;
• os riscos involuntários ou impostos (teoricamente evitáveis mas inerentes à vida quotidiana da sociedade moderna), como por exemplo os que resultam de acidentes em transportes;
• os riscos voluntários, ou seja evitáveis (aqueles em que um indivíduo ou uma sociedade aceita incorrer desde que os benefícios se sobreponham claramente ao receio de um acidente), como, por exemplo, os riscos que resultam da prática de desporto.
No que diz respeito aos serviços de protecção civil verifica-se em Portugal, por exemplo, que a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) considera que os riscos podem ser de dois tipos:
• tecnológicos (ou “man made”, de acordo com a terminologia anglo-saxónica), ou seja, as emissões nucleares, químicas ou industriais acidentais, a rotura de estruturas ou de infra-estruturas, etc.;
• naturais, nomeadamente os provocados por eventos meteorológicos, geofísicos ou ambientais.
O risco nos vales a jusante de barragens afigura-se, de acordo com os tipos de risco supracitados, como um risco imposto e tecnológico. Imposto, porque o indivíduo a jusante da barragem não tem controlo sobre a ameaça que a presença da mesma pode constituir, e muitas vezes, não desfruta de benefícios perceptíveis a ela associados. A presença de uma barragem implica igualmente riscos tecnológicos, já que se trata de uma estrutura construída pelo homem.
Conceito de risco nos vales a jusante de barragens
A rotura de uma barragem é um exemplo paradigmático de um tipo de acidente tecnológico muito pouco frequente mas com consequências potenciais muito significativas no vale a jusante. Note-se que a frequência dos acidentes associados a grandes barragens tem diminuído ao longo do tempo em resultado da melhoria nos conhecimentos científicos e tecnológicos e do controlo da qualidade e da segurança, respectivamente nas fases de projecto, construção e de exploração. Como ordem de grandeza pode indicar-se o valor de 10-4 para a frequência anual média de rotura de grandes barragens. No caso de uma barragem nova, a probabilidade estimada é tipicamente da ordem de 10-6.
Assim, a rotura de uma barragem é um acidente com muito baixa probabilidade de ocorrência, no caso de uma barragem projectada e construída de acordo com as normas e conhecimentos actuais. Contudo, caso a rotura ocorra, as consequências da onda de inundação resultante podem ser graves, dependendo das características da barragem e da albufeira e, muito especialmente, das características de ocupação do vale a jusante. A rotura provoca prejuízos económicos no vale a jusante da barragem, para além dos associados à destruição da obra propriamente dita e à consequente interrupção do funcionamento do aproveitamento.
No que diz respeito aos vales a jusante de barragens, verifica-se que a noção de risco se refere a uma dupla realidade: por um lado, alude ao risco de rotura de uma barragem (que se relaciona com a segurança da barragem e a análise do risco associado à barragem) e, por outro, ao risco em que incorrem os vales a jusante da mesma, pelo facto desta poder eventualmente colapsar (que se relaciona com as consequências da rotura e a análise do risco no vale a jusante de barragens).
O risco que afecta o vale a jusante de barragens pode, assim, ser traduzido pela probabilidade de ocorrência de um evento adverso P(Evento), uma cheia extraordinária, por exemplo, combinada com a probabilidade de rotura dada a ocorrência desse evento P(rot|Evento). Assim, no caso especifico das barragens, a expressão mais geral que se coaduna para a quantificação do risco será do tipo:
Rvale = P(Evento) x P(rotura/Evento) x consequências devido à rotura (Eq. 1)
A expressão supracitada contém uma tripla incerteza, pondo a sua análise a descoberto três incógnitas que lhe estão inerentes: as condições de solicitação a que a barragem pode vir a estar sujeita, o comportamento desta como resposta a uma qualquer solicitação e a avaliação das consequências. As duas primeiras incógnitas, fruto de um conhecimento imperfeito (ou de informação incompleta) acerca dos processos físicos e do comportamento futuro da barragem, podem conduzir a graus discrepantes na análise do risco, pelo que têm dado origem a investigação crescente no domínio da análise do risco associado à barragem. A avaliação das consequências devido à rotura, têm, por seu lado, originado investigação no âmbito da análise do risco nos vales a jusante de barragens.
Em rigor, as consequências também estão sujeitas a incertezas e a probabilidades de ocorrência, pelo que, mais recentemente, alguns autores tornam a (Eq. 1) mais geral e mais completa e acrescentam-lhe uma quarta incógnita: a probabilidade de ocorrência de perdas, uma vez ocorrida a rotura. Assim, estes autores avaliam o risco no vale a jusante, com base simultaneamente no risco interno da barragem e no risco externo do vale a jusante, para um dado evento actuando no sistema da barragem (Viseu e Almeida, 2009):
Rvale = P(Evento) x P(rotura/Evento) x P(N/rotura) x N (Eq. 2)
Na (Eq. 2), N representa as perdas, ou seja, por exemplo, o número total de vidas em exposição. P(N/rotura) é a probabilidade condicionada da ocorrência de N perdas dado que ocorreu a rotura da barragem. Esta última probabilidade condicionada de perdas ou danos é estabelecida pelo grau de perigo imposto pela cheia induzida (perigosidade da cheia) e está dependente do grau de exposição e da susceptibilidade à destruição aos quais indivíduos e bens estão sujeitos (vulnerabilidade do vale a jusante).
Os conceitos de perigosidade da cheia e de vulnerabilidade do vale estão associados à avaliação das consequências reais de uma cheia induzida no vale a jusante; ou seja, à percentagem do valor exposto ao risco (indivíduos e bens materiais ou ambientais) que pode ser efectivamente perdida, em função do grau de perigo e ainda da capacidade de resistência dos bens e da resposta dos indivíduos e da sociedade nas zonas a jusante (Viseu e Almeida, 2008).
Gestão do risco nos vales a jusante de barragens
Como é impossível garantir uma situação de risco nulo em qualquer sector de actividade da vida de uma sociedade, são empreendidos esforços para a sua gestão. Assim, a gestão do risco tem-se revelado como uma área de estudo de importância crescente, cuja expansão se Maria Teresa Viseu 429 tem afirmado nas últimas duas décadas, em consequência do desenvolvimento de indústrias que envolvem processos complexos e materiais potencialmente perigosos. De acordo com a bibliografia da especialidade, a gestão do risco compreende as fases da avaliação e da mitigação do risco. A avaliação do risco é realizada em duas etapas: a primeira é a análise do risco e a segunda é a apreciação do mesmo (Figura 1).
Cantwell e Murley (1988) estipulam que a análise do risco associado à barragem se baseia, em primeiro lugar, na caracterização exaustiva das potenciais deteriorações na barragem (ou seja, na identificação do risco) e pode, posteriormente, envolver a avaliação da probabilidade de ocorrência destas deteriorações (ou seja, uma abordagem de quantificação do risco).
A identificação do risco associado à barragem é, assim, a primeira etapa da análise deste risco, sendo um processo qualitativo e tão sistemático quanto possível, que consiste na caracterização dos eventos e das condições que podem estar na origem da rotura de uma barragem; esta fase é regida pela tentativa de resposta à pergunta: “o que pode originar uma rotura?”.
Por outro lado, relacionada com a quantificação do risco associado à barragem afigura-se pertinente a determinação da probabilidade de ocorrência dos diversos eventos que provoquem a sua deterioração limite; esta acção é regida pela tentativa de resposta à pergunta: “quão prováveis são os modos de rotura?”.
Figura 1 Gestão do risco nos vales a jusante de barragens.
A análise do risco no vale a jusante pode, por sua vez, ser quase completamente independente da análise do risco associado à barragem e visa a determinação das consequências da rotura de uma barragem; esta fase é regida pela tentativa de resposta à pergunta: “o que poderia acontecer, caso ocorresse a rotura (avaliação de danos e consequências)?”.
Uma análise exaustiva do risco implica respostas claras às perguntas acima colocadas, permitindo estimar uma medida quantitativa do risco efectivo, tal como representada pela (Eq. 2).
Uma vez avaliado o risco é possível efectuar a respectiva apreciação por comparação do seu valor com critérios de aceitabilidade e de tolerabilidade. O risco aceitável refere o nível de risco que a sociedade considera como tolerável, não se afigurando necessária a sua redução.
Finalmente, podem ainda ser dirigidos esforços no sentido da mitigação do risco residual. Esta fase da gestão do risco, define-se como uma acção combinada que consiste basicamente na implementação de procedimentos de prevenção e de preparação. Enquanto os primeiros diminuem a probabilidade de ocorrência de um acidente, os segundos reduzem, em caso de acidente, o número de perdas de vidas e o volume de danos materiais no vale a jusante.
Análise do risco associado à barragem
Alguns autores estipulam que a análise do risco associado à barragem se baseia, em primeiro lugar, na caracterização exaustiva das potenciais ocorrências excepcionais ou circunstâncias anómalas que podem estar na origem de deteriorações em barragens, ou seja, obriga à identificação dos factores de risco (Cantwell e Murley, 1988). Posteriormente, esta análise pode envolver a avaliação da probabilidade de ocorrência das deteriorações na barragem.
O problema de atribuir uma probabilidade de rotura a uma determinada barragem é uma tarefa difícil que deve ser realizada com base: i) nas características da estrutura; ii) no seu comportamento e estado de manutenção; iii) nas causas de rotura mais prováveis, assim como nos respectivos mecanismos e consequências.
Uma das metodologias mais utilizadas para realizar a estimativa da probabilidade de rotura de uma determinada barragem é a chamada técnica de análise de risco por “ árvore de probabilidade de eventos”. Este método consiste na desagregação da probabilidade total de rotura em componentes individuais, ou seja, nas probabilidades de ocorrência das várias causas de rotura possíveis.
Nesta metodologia surge a difícil tarefa de atribuir probabilidades aos acontecimentos resultantes da desagregação dos modos de rotura. Em termos gerais, existem duas abordagens possíveis:
• a metodologia empírica, que consiste na caracterização convencional probabilística de um evento incerto e que está baseada na definição estatística pura de “frequência relativa”; esta metodologia utiliza amostras recolhidas em informação histórica e apresenta a inegável vantagem de ser verificável cientificamente quando a amostra é representativa e homogénea; • a metodologia usualmente denominada de “grau subjectivo de julgamento” (“the subjective degree-of-belief”), que adopta uma visão mais global admitindo, não apenas as frequências observadas, mas também a experiência de técnicos especializados na fixação de estimativas de probabilidades, naquilo que é visto como uma medida de confiança na previsão de uma ocorrência futura. Esta interpretação é muito utilizada na análise de risco (“Bayesian approach”), mas é uma abordagem que admite factores relevantes que não podem ser estatisticamente avaliados, e por isso depende das estimativas do avaliador; ou seja, trata-se de uma metodologia que não é verificável por uma base científica.
No que diz respeito à segurança das barragens e ao primeiro tipo de abordagem, as estimativas da probabilidade de resposta do sistema podem, por vezes, ser realizadas utilizando bases de dados com informação histórica e estatística relativa a acidentes e a incidentes. No segundo tipo de abordagem, a atribuição de probabilidades é mais delicada, devendo a sua realização ser da responsabilidade de uma equipa de técnicos familiarizados com a barragem em questão, e nomeadamente com os aspectos de projecto, construção, operação e comportamento da mesma. Esta equipa deve recorrer a estudos (estatísticas de roturas bem como toda e qualquer outra informação disponível), podendo mesmo concluir, antes da atribuição de valores de probabilidades fidedignos, que são necessários estudos futuros, nomeadamente a revisão da segurança da barragem. Neste tipo de abordagem são muitas vezes utilizados descritores verbais do tipo “acidente de ocorrência provável” ou “acidente de ocorrência praticamente impossível (Quadro I).
Quadro I Descritores verbais para a atribuição de probabilidades
Análise do risco no vale a jusante
A consideração dos vales a jusante das barragens como objecto de análise do risco associado a essas estruturas no contexto da actividade normal de engenharia e dos serviços de protecção civil é recente. Em Portugal, este conceito foi incentivado e divulgado através de actividades no âmbito de um projecto financiado pelo Programa Science for Stability da NATO (Almeida et al., 2003). Actualmente, o regulamento nacional de segurança de barragens estipula as exigências a cumprir no âmbito das medidas de protecção civil no vale a jusante, nomeadamente no que diz respeito ao estudo da cheia induzida (RSB, 2007).
De acordo com este documento legal, a análise do risco nos vales a jusante de barragens deverá ter em conta as consequências de hipotéticos cenários de rotura por forma a diferenciar situações locais e a possibilitar a preparação adequada das medidas de protecção civil ajustadas a cada caso. A avaliação destas consequências, ou seja, a determinação dos danos e a estimação do número expectável de vítimas no vale a jusante, repousa essencialmente em dois aspectos (Viseu, 2006): i) a simulação da cheia induzida que permite caracterizar o evento perigoso e definir o zonamento do risco; ii) a caracterização da vulnerabilidade das áreas do vale a jusante da barragem que vão sofrer o impacto da cheia induzida.
Simulação da cheia induzida
Os modelos existentes para efectuar a simulação do processo de propagação da cheia induzida pela rotura de barragens constituem aplicações particulares dos modelos gerais de propagação de cheias naturais. A formulação matemática que está na base destes modelos é obtida a partir das equações da hidrodinâmica, correspondentes aos escoamentos em superfície livre (dinâmicos e variáveis). De notar ainda que o grande desenvolvimento dos meios computacionais, nas últimas décadas, tornou correntes os modelos hidrodinâmicos, de que constituem talvez os exemplos mais conhecidos os softwares de domínio público Dambrk (Boss Dambrk, 1991) e Hec-Ras (Usage, 2002).
Os modelos de simulação fornecem resultados que consistem nos valores máximos dos caudais de ponta de cheia, das velocidades máximas de escoamento, dos níveis máximos de escoamento e dos tempos de propagação do pico e da frente de onda, com os respectivos instantes de chegada a cada uma das secções do vale a jusante. Os níveis máximos atingidos pelo escoamento permitem delinear as áreas a jusante onde ocorrem inundações, ou seja, definem o mapa de inundação.
Uma vez efectuado o cálculo da cheia induzida e possuindo o mapa de inundação é então necessário delinear o zonamento de risco para as áreas ou zonas susceptíveis de serem inundadas. Na realidade, estas zonas sofrem os impactos da cheia induzida de formas distintas e, por conseguinte, as medidas de protecção civil (nomeadamente a nível das possibilidades e modalidades de aviso e de evacuação das populações) devem ser definidas tendo em conta estas diferenças. Na verdade, a definição das diferenças de risco entre as zonas que constituem toda a área inundada, i.e., a definição do zonamento de risco assume-se como uma questão algo problemática e, em particular, a definição da zona próxima da barragem que corresponde à zona onde a acção dos agentes de protecção civil se torna mais difícil, porque é a que mais rapidamente fica inundada.
Em termos práticos, o zonamento de risco deve ser definido em função das características da cheia induzida, nomeadamente do valor máximo da altura da água e do tempo de chegada desta. Existem, no entanto, outras características da cheia que poderão também ser tidas em conta, nomeadamente a velocidade do escoamento (que dá uma ideia do seu poder destrutivo), a velocidade média de subida do nível da água ou gradiente da altura do escoamento e a duração das submersões (que permite avaliar os custos materiais).
Em Portugal, considera-se que o critério para definição da zona de risco máximo é a distância percorrida pela cheia induzida em 30 minutos, com um percurso mínimo de 5 km. Nesta zona de maior risco, que se denomina de “Zona de Auto-Salvamento” (ZAS), a protecção à população é usualmente assegurada pela instalação de um sistema de aviso (sirenes, por exemplo) operado a partir da barragem. Nesta zona é, igualmente, preconizado o princípio do auto-salvamento como meio de evacuação; ou seja: em caso de acidente, o alarme deve ser directamente dado pelo sistema de aviso da barragem e as pessoas (que devem conhecer os locais de refúgio) deverão dirigir-se autonomamente para os locais seguros.
Caracterização da vulnerabilidade do vale a jusante
Tal como já foi referido, a caracterização do evento da cheia induzida (com a respectiva definição da área de inundação) e a estimativa do grau de perigo, (concretizada pela delineação do zonamento) constituem os primeiros passos para a realização de uma análise do risco no vale a jusante. Esta operação terá, no entanto, de tomar em linha de conta a situação de ocupação do solo no vale a jusante. Com efeito, eventos com características semelhantes podem dar origem a acidentes de dimensões totalmente diferentes em regiões com padrões de ocupação, tipos de população ou modos de construção e de organização social distintos. Os danos que ocorrem nos vales a jusante de barragens dependem dos seguintes factores: i) do tipo e densidade de ocupação do solo; ii) da capacidade de resistência dos bens expostos e da resposta dos indivíduos e da sociedade nas zonas a jusante.
Assim, nesta etapa procede-se, inicialmente, à compilação de toda a informação disponível relativa ao vale a jusante com interesse para a análise (em princípio, mais de 30 km), recomendando-se a realização de uma visita de inspecção ao vale próximo (os primeiros 5 km). Nos casos em que a linha de água, numa distância inferior aos 30 km, atinge a foz ou uma secção em que o hidrograma da cheia provocada pela rotura da obra seja menos gravoso que o de uma cheia com período de retorno (T) de 100 anos, o percurso a estudar poderá ser inferior.
Na caracterização do vale a jusante deve, em particular, ser elaborada uma estimativa do número de pessoas residentes. Com efeito, o RSB define que a população deve ser avaliada em função do número de pessoas que ocupam a região que pode ser afectada, designado por número de residentes, considerando como residente cada pessoa que ocupe em permanência as habitações, os equipamentos sociais ou as instalações, e considerando ainda os ocupantes temporários, nomeadamente dos equipamentos sociais e das instalações comerciais e industriais, turísticas e recreativas, mas afectando o respectivo número pelo factor um terço.
O mesmo documento estabelece que os bens devem ser avaliados em função das habitações e dos equipamentos sociais, instalações e infra-estruturas, tendo em consideração a interrupção dos serviços prestados, bem como do ambiente, tendo em consideração o seu valor e capacidade de recuperação e devendo ser considerada a existência de instalações de produção ou de armazenagem de substâncias perigosas.
A estimativa dos residentes no vale a jusante pode ser efectuada a partir do recurso a diferentes fontes de informação nomeadamente os mapas topográficos (quando relativamente actuais). Estes incluem, para além das cartas militares à escala 1:25 000, os ortofotomapas à escala 1:10 000 e ainda as plantas de ordenamento de território dos planos directores municipais dos municípios (PDM) que se encontram dentro da área de inundação.
A caracterização da ocupação do vale a jusante obriga, adicionalmente, à efectuação de trabalho de campo para proceder à recolha de informação. Com efeito, um levantamento porta a porta constitui um recurso que permite a recolha de informação “fresca”, essencial para uma caracerização adequada. Neste processo é muito importante a participação de técnicos da protecção civil a nível local e das autarquias envolvidas na área de risco (que são responsáveis pelo planeamento de emergência no vale a jusante e são, sem dúvida, os técnicos mais familiarizados com a área de risco).
Actualmente, para a caracterização da ocupação do solo do vale a jusante da barragem recorre-se, igualmente, às imagens disponibilizadas pelo software Google Earth (http://earth. google.com/intl/pt/).
Em Portugal, outro dos instrumentos fundamentais para a caracterização do vale a jusante são os dados estatísticos apurados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) através dos recenseamentos gerais da população e da habitação (o último tendo sido realizado em 2011), publicados nos respectivos censos.
Apreciação do risco nos vales a jusante de barragens
Uma vez feita a análise do risco é necessário efectuar a sua apreciação por forma a verificar qual o nível do esforço a empreender na fase da mitigação do risco. De facto, a apreciação do risco pode revelar-se uma acção algo subjectiva. Com efeito, muitas decisões são tomadas com base na nossa própria percepção do risco. Guru Prem (1995) apresenta a definição de risco subjectivo como constituindo a percepção que um dado indivíduo tem da ameaça provocada pela eventual ocorrência de um evento negativo, sendo que este é influenciado por:
• o grau de conhecimento individual do risco;
• a familiaridade com o risco;
• os factores psicológicos (percepção do risco);
• a severidade potencial das consequências;
• o grau de aversão ao risco.
Silva (2001) faz notar que diferentes graus de percepção ou de juízo de um determinado risco geram atitudes, motivações, acções e comportamentos distintos; alguns comportamentos mitigam o risco, outros podem mesmo aumentar a vulnerabilidade dos elementos em risco.
A apreciação do risco pode, assim, variar, assumindo um significado diferente, consoante é concebida por especialistas ou por leigos, sejam eles o indivíduo comum ou a sociedade, reunida em grupos sociais. As diferenças relativas à concepção do risco entre o leigo e o especialista são grandes e não raras vezes entra em conflito a percepção do risco pelo público com a apreciação do mesmo realizada pelos técnicos. Relativamente a este aspecto verifica-se que existem basicamente duas escolas da sociologia:
• a que defende que apesar do leigo ter muitas vezes falta de informação sobre determinados riscos, a sua conceptualização básica do risco é muito mais rica que a dos especialistas e reflecte preocupações legítimas que muitas vezes são omitidas nas apreciações técnicas do risco (Hartford, 1995); • a que defende que só é possível comparar riscos que são calculados duma maneira similar, afigurando-se como uma obrigação ética por parte das várias especialidades a tarefa de desenvolver “métodos mais racionais” na definição do conceito do risco, devendo-se assumir que existem muitos aspectos humanos que não podem ser incorporados numa apreciação racional de riscos.
A Figura 2 apresenta um exemplo que ilustra o “modus operandi” desta segunda escola. Nela é contemplado o risco associado a algumas obras de engenharia, durante o período de construção, com a sinalização do número de vítimas e dos prejuízos económicos, i.e., a figura considera apenas as consequências quantificáveis (tangíveis) resultantes dos danos materiais nas propriedades, nos edifícios, nas actividades económicas (agrícolas, industriais, comerciais) e nas infra-estruturas (no caso presente, em especial, a própria barragem). Faz-se notar que, geralmente, não são contabilizados outros custos associados, nomeadamente:
• os custos indirectos, ou seja, os que tipicamente derivam da perda de produção de bens e serviços por interrupção do funcionamento das actividades económicas, das infra-estruturas e dos serviços essenciais (vias de comunicação, abastecimento de água, energia e telecomunicações) assim como dos benefícios económicos expectáveis da barragem (lucros cessantes); • os custos de mitigação, ou seja, os relacionados com as acções de mitigação do risco e de protecção civil, nomeadamente as acções de salvamento (incluindo alojamento e tratamento de vítimas); • os custos de re-instalação (“replacement costs”, na terminologia anglo-saxónica), ou seja os necessários para recuperar os edifícios, as infra-estruturas, as áreas agrícolas e a própria barragem.
Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Hidráulica e Ambiente